quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

E quando o mundo não acabar...


Existe em todos nós uma certa tendência para imaginarmos – já que dispomos dessa poderosa ferramenta que é a imaginação – como seria o mundo sem a humanidade, como seria se algo que efectivamente “é” o deixasse de ser de um momento para o outro. Imaginamos a vida qual criança que fecha a porta do quarto para logo em seguida voltar a abri-la devagarinho, na curiosidade de descobrir como é o seu pequeno mundo na sua ausência.
É do conhecimento geral que o mundo vai acabar daqui a dois anos… ou não será assim?
Talvez andemos a rezar demasiado no altar de Hollywood e a sacrificarmo-nos aos seus deuses, sem nos darmos conta. Quase todos os dias sou confrontada com pessoas de diversas idades, que acreditam que algo aterrador vai ter lugar muito em breve (talvez “numa sala de cinema perto de si”), de acordo com o tão falado e pouco explicado calendário maia. Desde catástrofes naturais sem precedentes – porque já não guardamos nos arquivos da nossa memória a última erupção do Thera, bem como de outras catástrofes semelhantes – até profundas transformações a nível sócio-económico, sem descurar as subtis e não menos atraentes alterações no “estádio espiritual do planeta Terra”, o cardápio, já se viu, é variado, e o milenarismo arranja sempre uma forma de nos acenar com o seu estandarte de assombros, mesmo quando já ultrapassámos mais um milénio…
E eis que “A Guerra dos Mundos” de Orson Welles volta à ribalta, agora sob a forma de um número: “2012”.
Existe, porém, um ponto de vista com qual não posso deixar de concordar: as possíveis catástrofes naturais servirão para unir todos os povos em torno de uma causa comum, algo que só a nossa tecnologia torna possível.
Actualmente, dispomos de meios informativos, estes sim sem precedentes. No século XVII a C. quem terá tido conhecimento da erupção do Thera? Milhares de pessoas e de animais morreram de fome na Europa devido ao Inverno nuclear que se lhe seguiu, isto sem mencionar as sete pragas do Egipto e o desaparecimento da civilização minoica. Nessas épocas remotas, as notícias calcorreavam os caminhos com um atraso de meses, de anos e até de séculos, ao ponto de chegarem às populações mais distantes sob a forma de lendas capazes de transformar um pequeno exército de cem homens num gigante de cem cabeças.
Há quem faça do actual pesadelo haitiano um arauto do que está por vir, mas se temos acesso ao que se passa no Haiti e noutras partes do mundo é porque dispomos de meios de divulgação actualizados ao minuto. Por quantas catástrofes o Haiti terá passado sem que os europeus e outros povos o soubessem?
E, como as notícias se atropelam umas às outras a um ritmo incessante, em breve o Haiti será novamente remetido para as sombras onde sempre viveu, juntamente com a misteriosa cultura e reis escravos megalómanos de que a sua História é feita. É pena que assim seja e é também triste que só agora se dê atenção a um país que, de acordo com as avisadas palavras de Marion Zimmer Bradley, nunca foi levado a sério.
O mundo acaba e recomeça a cada instante, a cada dia. Os Minoicos presenciaram o fim do seu mundo diante da fúria incandescente do Thera; quem sucumbe debaixo dos escombros de um terramoto vê o mundo fechar-se em torno de si; quem na cama de um hospital exala um último suspiro vê o mundo apagar-se a seus olhos… O mundo é isto mesmo, algo esquivo, presente e ausente a um só tempo.
Nem os próprios Maias, autores de tão mediático calendário, foram capazes de prever o fim da sua civilização, melhor dizendo, da transformação da sua sociedade noutras.
Quisera acreditar que fosse possível progredirmos espiritualmente enquanto espécie, quer através da nossa consciência quer mediante catástrofes naturais que expusessem a nossa pequenez e fragilidade, que derruissem o nosso despotismo, que afogassem a nossa arrogância, que reduzissem a cinzas as nossas certezas e que pusessem termo à exploração do Homem pelo Homem.
Não se trata mais de imaginar como seria o mundo sem nós, antes como seríamos nós sem o mundo do qual nascemos e onde fomos criados, sem este mundo capaz de nos abrigar e de suportar a nossa ingratidão, como uma mãe sustenta um filho.