Não sei se por desconhecimento ou por simples teimosia em plagiar os modelos alheios, Portugal sofre daquela triste tendência para a cópia – algo que parece começar logo nos bancos da escola – e chegamos mesmo ao ponto paradoxal de copiar dos outros aquilo que nós próprios demos a conhecer ao resto do mundo e que era parte integrante da nossa tradição, bem como da cultura europeia em geral, assistindo-se hoje em dia ao regresso de antigos hábitos já por nós esquecidos.
O Carnaval traça as suas origens de forma quase tão equívoca quanto o são os apetrechos e os gestos que o acompanham. Esta festa, conforme a conhecemos actualmente, regida pela fuga ao real e pela inversão dos papéis sociais, nasceu na Europa medieval como meio de censura, nomeadamente nas regiões mediterrânicas onde esta sempre atingiu uma maior amplitude.
Desengane-se quem pensa que o Carnaval teve início com a prática da Quaresma ainda em época romana. A quarentena penitencial e posteriormente a introdução da Semana Santa apenas vieram reforçar o carácter libertador e boémio da festa que as antecede. A própria etimologia da palavra é bastante dúbia, remetendo-nos, contudo, para a expressão “carne levamen”, ou seja, para a abstinência do consumo de carne. Também a palavra “Entrudo” parece advir de “introitus”, uma introdução à Quaresma. Por outro lado, as máscaras seguem o Homem desde o Paleolítico Superior. Inicialmente detinham um cunho demarcadamente ritualista e apotropaico ligado ao animismo, como ainda hoje sucede em várias culturas. No Teatro grego, a máscara adquiriu um aspecto mais representativo do que religioso e é precisamente na vertente profana que este objecto evoluirá durante a Idade Moderna e a contemporaneidade.
Muito antes do surgimento do Cristianismo já os povos clássicos e pré-clássicos pagãos celebravam uma festa “gorda” que marcava o fim das colheitas e, portanto, um período de abundância, a qual variava de acordo com o calendário agrícola de cada região.
Na Idade Média, o uso de máscaras não era fundamental nesta época de diversão e de pilhagens. Os bailes carnavalescos só vieram a ser instituídos no século XV pelo Papa Paulo II, como forma de controlar a inflamação da consciência e de impedir excessos, uma vez que era de todo impossível coibir o povo de retomar antigas práticas da Roma Imperial – sinais dos tempos renascentistas. Na sua cidade natal, Veneza, os bailes atingiram um esplendor muito particular. Aí, o ruído dos charivari foi sendo substituído pelo silêncio exuberante das máscaras que cobriam de mística os rostos por detrás delas. A noite confunde e indiferencia, nela reina o caos, as fronteiras esbatem-se, os ricos fidalgos misturam-se com os pobres, os credores com os devedores, os homens com as mulheres, os soldados com os ladrões, as donzelas com as meretrizes, é o mundo dionisíaco por excelência, desse mesmo Dionísio, patrono do vinho e da rambóia, de que Nietzsche nos fala, por oposição a Apolo, deus solar cuja luz tudo individualiza e expõe.
Não é à toa que esta festa é planeada de acordo com o calendário lunar. A Páscoa ocorre no primeiro Domingo após a lua cheia que se segue ao equinócio da Primavera (21 de Março), se andarmos 47 dias para trás iremos ter à terça-feira de Carnaval, daí a mobilidade de ambas as comemorações. A quarta-feira de cinzas corresponde ao enterro do Carnaval, cinzas que simbolizam a aniquilação da carne em prol da elevação da alma – a expiação dos pecados, a purificação.
Esquecidos de tudo isto, importámos do Brasil um Carnaval que nos é estranho e que no rigor do nosso Inverno surge descontextualizado e inadaptado. A festa que teve outrora como divisa a entrega aos prazeres da vida antes da abstinência da Quaresma, vê-se assim convertida – para não dizer prostituída – num auto-flagelo do qual nem os mais intrépidos penitentes medievais se lembrariam! Em vez dos antigos bailes e concursos de máscaras vemos desfilar pelas ruas rapariguinhas a tilintar de frio, que dançam incessantemente não de alegria mas para aquecerem o corpo arrepiado pela intempérie! É de assumir que o Carnaval se superou a ele próprio na sua contínua metamorfose; é sem dúvida o burlesco a triunfar sobre os foliões, a escravizá-los na sua incultura e falta de imaginação.
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