terça-feira, 9 de novembro de 2010

Não Há Espaço...

"Não estudamos para a vida, mas para a Escola." Séneca


A vida é um lugar demasiado exíguo para que possamos habitá-lo sem que sejamos alguma vez confrontados com o desejo de liberdade ou com a simples escolha entre o conformismo e a reivindicação.

Queremos sentir que pertencemos a algo, que fazemos parte de um elenco necessário ao desenrolar da trama da vida, queremos ter um sentido de existência, descobrir um lugar que apenas nós possamos ocupar, tal como uma peça num quebra-cabeças, um verso num poema ou uma estrela na imensidão do Universo. É então que nos deparamos com a mais lívida das constatações: não há espaço para nós.

A Escola não nos ensina a viver, só nos ensina a estudar.

Os anos dedicados somente ao estudo, funcionam como uma espécie de redoma que nos ausenta do mundo, criando em nosso redor um sistema alternativo e ilusório que afasta o real das nossas vidas e nos embala à beira de um precipício. Ao acordar, damo-nos conta de que o nosso tempo já passou, como alguém que recobra os sentidos ao fim de longos anos de coma e se apercebe de que envelheceu sem que tenha vivenciado tal transformação.

A Escola sempre foi vista como sendo um recurso moralmente aceitável para o crescimento orientado e, por que não assumir, restritivo, do espírito humano. Nos séculos XVIII e XIX, e de acordo com as palvras de Kant, a Escola existia não necessariamente para transmitir conhecimentos aos mais novos, mas, antes, para os instruir na tão nobre prática do obedecimento das regras impostas pela Sociedade, evitando que mais tarde exprimissem livremente os seus ideais ou sequer os construíssem.

Devo dizer que a Escola dos nossos dias conseguiu pela inépcia aquilo que a Escola do século XIX não conseguiu pelo rigor e pela disciplina: evitar a dissidência.

Embora as batalhas de hoje sejam ainda as mesmas que produziram heróis e criminosos no passado, as arenas onde são travadas já não lembram os antigos cenários politico-religiosos, a mesma fé e a mesma questão de honra que transbordavam dos enfáticos discursos de outrora. Hoje em dia não há dissidência porque não há idealismo. Onde estão as referências, os nomes e os rostos que se elevavam em estandartes sobre as cabeças dos estudantes revolucionários? Não estão mais, perderam-se algures numa nota de rodapé quando saltaram dos polémicos noticiários para os enfadonhos livros de História, quando deixaram de ser gritados nas ruas e maltratados por políticos ambiciosos e opressores e passaram a ser monocordicamente articulados pelo tédio dos professores de História. Em poucas décadas, os grandes líderes do século XX perderam o fulgor, como uma fogueira que arde e por fim se extingue, como um antídoto que deixa de surtir efeito.

Já Voltaire, dizia que o espírito criativo das crianças era sufocado por "conhecimentos inúteis". A inutilidade de certos conhecimentos impostos às crianças e aos jovens é questionável, mas não deixa de ser evidente a atrofia que o excesso de pormenor produz sobre a imaginação, um estrangulamento que resulta de imediato na frustração, no desânimo e na sensação de vazio, nesse mesmo vazio que Darwin referiu um dia ter sentido em relação à Escola.

A Escola deveria ser o mais fecundo alicerce da sociedade, não um mero instrumento de inibição do pensamento e, menos ainda, um mecanismo que impeça o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. O aumento da escolaridade obrigatória tem sido sempre inversamente proporcional ao nível de exigência. Os conhecimentos diluem-se por doze anos de estudo obrigatório e acabam por se perder no marasmo da repetição. Se pegarmos, a título de exemplo, na matéria de História do 10º ao 12º ano, verificamos que o número de temas propostos, bem como o aprofundamento dos mesmos, torna-a estudável em pouco mais de 6 semanas e, no entanto, é prolongada por três anos.

Há no estudo um ócio perverso, um estatismo doloroso. Entretemo-nos, ao longo dos anos mais produtivos das nossas vidas, a arrecadar a escória das teorias de outros, entulho ideológico, bibelots ingénuos para os quais nunca encontramos lugar nas prateleiras da vida real, em vez de usarmos esse tempo imenso e tão fértil para construirmos o nosso próprio pensamento e darmos corpo aos nossos ideias. O ensino há muito se tornou um encosto: "encosta-te numa faculdade até teres vaga no mercado de trabalho". Não há espaço para tanta gente numa sociedade mecanizada. Antigamente, quando não havia uma "idade de reforma", também não havia uma "escolaridade obrigatória".

A Escola é um anestésico que nos torna incapazes de agir sobre as nossas próprias vidas e nos mortifica o espírito. O papel de "alavanca capaz de elevar o Povo ao nível da moral", como nas palavras de Guerra Junqueiro, adquiriu na actualidade um estatuto algo sombrio e esquivo, o de sorvedor da força que impulsiona a juventude a progredir. A estagnação é o seu mote e o refreamento o seu triunfo.

Estudar, é uma forma poética de dormir a vida.