segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Estrela de Bethleém

E tendo eles ouvido o rei [Herodes], partiram; e eis que a estrela, a mesma que haviam visto no Oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.

Mateus 2, 9


Encontrei recentemente uma dessas revistas de propaganda religiosa que denunciava sem quaisquer reservas a origem demoníaca da estrela que terá guiado os Reis Magos até Bethleém, onde se encontrava o menino Jesus, que a essa altura deveria ter já cerca de um ou dois anos, uma vez que Herodes, após falar com os Magos, ordenou a morte de todos os rapazes dessas idades, pois entre eles estaria o tão esperado “rei dos judeus”.

A dita revista justificava o carácter nefasto da estrela, afirmando que um tal fenómeno só poderia interessar a quem queria fazer mal ao Messias, uma vez que assinalava o local exacto onde este poderia ser encontrado. Este raciocínio tinha por objectivo, segundo pude perceber, condenar o uso de uma estrela ou cometa como decoração natalícia. Mas terá a estrela ou cometa sido um fenómeno real ou não terá passado de um mero recurso literário, já que apenas S. Mateus a menciona, empolado pelo fértil imaginário medieval?

A Bíblia documenta dois acontecimentos que podem ser usados como balizas cronológicas para datação do nascimento de Jesus Cristo. O primeiro corresponde ao recenseamento ordenado pelo imperador Augusto por volta do ano 7 a. C., o segundo diz respeito à morte do próprio rei Herodes, que terá ocorrido poucos dias antes da Páscoa judaica, numa altura em que foi testemunhado um eclipse lunar. Neste ponto começam as incongruências, isto porque o célebre eclipse, que naquele tempo foi logo à partida encarado como um presságio, teve lugar a 13 de Março, quatro anos antes da data fixada pelo monge Dionísio, “O Exíguo”, para o nascimento de Cristo.
No século VI, Dionísio, “O Exíguo”, um monge de origem cita, após inúmeros cálculos fixou como primeiro ano da Era Cristã o ano 754 ad urbe condita, ou seja, o ano 754 a contar da fundação de Roma, cometendo um erro de quatro anos que ficou a dever-se ao seu desconhecimento da data exacta da morte de Herodes que, hoje sabe-se, foi no ano 750 da fundação de Roma, isto é, no ano 4 a.C..

O fenómeno astronómico relatado por S. Mateus, o surgimento e uma estrela muito brilhante, que pode se entendida como sendo um cometa, é algo vago e impreciso. Porém, há que salientar que os fenómenos astronómicos eram muito bem documentados pelos astrólogos da Antiguidade, quer europeus quer asiáticos, até porque eram olhados com suspeita e associados a crenças supersticiosas ligadas não apenas ao nascimento de reis mas sobretudo à prática da agricultura e à guerra. O facto é que não existe referência a nenhum acontecimento de semelhante envergadura entre os anos 7 e 4 a.C., ou seja, entre o recenseamento de Augusto e a morte de Herodes. Por outro lado, as fontes assinalam a passagem de um cometa no ano 12 a.C. (o Cometa Halley), demasiado cedo…

Uma conjunção rara…

No início do século XVII, o astrónomo alemão Johannes Kepler apercebeu-se de um fenómeno raro, mas ainda assim previsível, uma conjunção entre os planetas Júpiter e Saturno na constelação de Peixes. Segundo os cálculos efectuados por Kepler, este acontecimento teve igualmente lugar no ano 7 a.C., o qual veio a ser confirmado já no século XX através da descoberta de umas tabuinhas babilónicas, escritas em caracteres cuneiformes, que aludem precisamente a esse evento astronómico. A partir daqui é fácil fazer uma leitura simbólica do fenómeno, a mesma que certamente os Magos do Oriente, eles próprios astrólogos, terão feito. Júpiter é o rei dos deuses e Saturno é um deus ligado ao tempo cronológico e à justiça: “nasceu o rei que trará a justiça aos homens”.

Se confiarmos inteiramente neste raciocínio, então poderemos afirmar que à data fixada para o seu nascimento, Jesus Cristo teria já completado 6 anos de idade ou até um pouco mais, tendo em consideração que os Magos terão chegado a Bethleém algum tempo depois… Talvez devêssemos estar agora no ano 2016 ou 2017 d.C.…

O facto de esta conjunção surgir na constelação de Peixes, também é digna de nota. O peixe, conotado com elemento “água”, foi identificado na Antiguidade com o Povo Hebraico, conduzido para fora do Egipto por Moisés, o “salvo das águas”. Mais tarde, o peixe tornou-se num emblema por excelência do Cristianismo e inclusivamente o seu desenho estilizado chegou a figurar em ânforas romanas independentemente do conteúdo destas, sobretudo a partir do dominato de Constantino, imperador que oficializou o Cristianismo no Império Romano (século IV d.C.). A somar a isto, a palavra grega para peixe, Ichthys, forma um acrónimo com as letras da frase Iesus Christus Theos Yios Soter, que significa “Jesus Cristo filho de Deus salvador”. O Nascimento de Cristo inaugurou a Era astrológica de Peixes.

Uma manta e retalhos…

A religião cristã é bastante eclética na sua origem, apresentando-se como uma colagem de diversos aspectos que podem ser observados noutras religiões orientais que ofereciam ao Homem respostas acerca da morte e da vida no Além, ao contrário da religião oficial do Império Romano, centrada em torno dos deuses capitolinos (Júpiter, Juno e Minerva), que era omissa em relação a estas questões tão caras à humanidade.

Teremos de olhar para o Mitraísmo para percebermos de que forma a meia-noite de 24 de Dezembro foi assumida como a noite da Natividade a partir do século IV d.C., noite essa que está longe de ser corroborada pelo Novo Testamento.
Mitra era um importante deus do Zoroastrismo e encontrava-se ligado à ideia de Justiça, à semelhança de Saturno, bem como à disciplina militar. Embora o Mitraísmo fosse originariamente um culto indo-iraniano, citado nos Vedas, revestiu-se de uma enorme importância para o exército romano entre os séculos II e IV d.C.. A mitologia persa apresenta-o como tendo nascido numa gruta, aquecido por animais numa manjedoura que lhe servia de berço. O seu nascimento, também ele assinalado por uma estrela ou cometa, era celebrado na noite de 24 de Dezembro. As semelhanças entre este mito e o nascimento de Jesus Cristo, que não param por aqui, são evidentes, o que nos leva a concluir que houve uma fusão entre a mitologia e a História ou, por que não dizer, uma apropriação de estatutos a nível religioso. Por outro lado, a data estabelecida para celebração do Natal, encontra-se muito próxima ou mesmo sobreposta às festividades pagãs ligadas ao culto de deuses solares e que assinalavam o Solstício de Inverno, o que, de certa forma, servia para cativar aqueles que ainda cultuavam esses antigos deuses, uma estratégia que, como é bem sabido, fez parte da política cristã até quase à Baixa Idade Média: se não se conseguia aproximar as pessoas do Cristianismo, aproximava-se o Cristianismo das pessoas.

Quanto à revista de pendor religioso que veio parar-me acidentalmente às mãos, tenho apenas a acrescentar que embora os seus argumentos sejam válidos do ponto de vista da crença, tornam-se mera propaganda inútil quando confrontados com a História e com a Astronomia. Não vale a pena especularmos tão fervorosamente sobre o que nunca existiu.



8 comentários:

Nanda Costa disse...

Texto esplêndido, para mim de leitura obrigatória. O saber da nossa época ajuda a desenrolar determinados novelos, achar-lhes a ponta e daí reordenar a História. É gratificante observar os factos da Bíblia e questioná-los à luz das pistas e descobertas actuais, sem lhes retirar a beleza.
Bjs!

Isabella disse...

É um tema que envolve muita especulação. A tal revista que me chegou às mãos era das Testemunhas de Jeová. Quando comecei a ler o artigo, senti-me inclinada a dar-lhes razão, não assentassem os seus argumentos em premissas falsas, afinal estamos a lidar com uma lenda construída sobre uma figura de estilo literária inspirada em mitos de outras religiões do Médio Oriente Antigo.

Bjinhos

Diabba disse...

Miúda, és sempre surpreendente a escrever.
Não pratico nenhuma religião em particular (era o que faltava, até me ficava mal), mas a da igreja católica é a que está mais longe daquilo em que acredito.
Por isso, o que te posso desejar é:
boas festas de Solstício de Inverno, e que as tuas colheitas (amorosas, laborais, familiares e de amizade) sejam as melhores. Se usas boas sementes, certamente farás boas colheitas.
beijos d'enxofre

Isabella disse...

Para ser franca, não ligo nenhuma ao Natal, é uma época confusa e não sei exactamente o que estou a celebrar, se o nascimento do deus Mitra (ou de Apolo) ou o nascimento do filósofo Jesus Cristo, sim, para mim Jesus Cristo é acima de tudo um filósofo admirável!
Também não me identifico nada com a Igreja Católica, por isso desejo-te igualmente um feliz Solstício de Inverno e que as tuas colheitas (aí no Submundo e não só) sejam positivas e duradouras!
Beijos

Diabba disse...

Ahhh e se o Mitra sabe o significado que, na tugalândia, damos ao "mitra" vem a este canto mal frequentado, e arrasa isto tudo. hihihihihi
beijos d'enxofre

Isabella disse...

Nem me tinha lembrado disso! O que nos vale é que a Tugalândia é aquela região pertencente ao Sudoeste espanhol... Talvez o Mitra nem repare em nós!:))
Beijos

Anónimo disse...

A verdade dos factos nem sempre é verdade dos homens. Mas a educação e a fé existem em diferentes povos e devem-se a factores de educação religiosa da sociedade onde nascemos. A civilização ocidental desenvolveu-se mais que outras e teve por trás o Cristianismo e a Igreja Católica quer se queira ou não. O Natal é um tempo de celebrar o nascimento das famílias, neste caso o nascimento do filho de José e Maria, Jesus. Se um dia provarem que isto é uma treta, talvez a base da nossa Sociedade, já de si sem muitos defensores dos valores familiares, acabe de vez, e passemos a ter de aceitar outros valores e outras crenças e religiões melhores documentadas e em expansão. Não sou baptizado mas acredito na Fé (já senti os seus efeitos...) e a época Natalícia é das mais felizes da minha vida pois revivo sempre o espírito de amor da Família ausente e presente. Boas e Santas Festas e um Bom Dia de Reis. Eduardo Mendes

Isabella disse...

É bem verdade que a Igreja Católica teve um papel de suma importância na edificação daquilo a que chamamos de "sociedade ocidental" e, de certa forma, soube assumir-se como uma verdadeira herdeira do Império Romano, sobretudo através da preservação dos textos clássicos. Sem a actuação da Igreja, o Renascimento não teria sido possível ou ter-se-ia dado de outra forma. Jesus Cristo, por seu lado, é indiscutivelmente uma figura histórica e, portanto, terá nascido numa qualquer data. A Bíblia fornece-nos poucas pistas a esse respeito e a descrição da paisagem por alturas do seu nascimento é uma delas, o que nos leva a crer que terá ocorrido na Primavera ou já no Verão. Na minha opinião, trata-se apenas de um anacronismo ou de uma colagem ao velho paganismo, o que nada altera a nossa perspectiva em termos de fé. De qualquer forma, a época em que celebramos o Natal não deixa de ser importante, já os povos pagãos a celebravam independentemente do Mitraísmo, enfeitando árvores, trocando prendas e reunindo as famílias. O Solstício de Inverno sempre foi uma época de paz e reconciliação e esperemos que assim continue a ser.
Muito obrigada pelo seu comentário. Feliz dia de Reis!