segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Estrela de Bethleém

E tendo eles ouvido o rei [Herodes], partiram; e eis que a estrela, a mesma que haviam visto no Oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.

Mateus 2, 9


Encontrei recentemente uma dessas revistas de propaganda religiosa que denunciava sem quaisquer reservas a origem demoníaca da estrela que terá guiado os Reis Magos até Bethleém, onde se encontrava o menino Jesus, que a essa altura deveria ter já cerca de um ou dois anos, uma vez que Herodes, após falar com os Magos, ordenou a morte de todos os rapazes dessas idades, pois entre eles estaria o tão esperado “rei dos judeus”.

A dita revista justificava o carácter nefasto da estrela, afirmando que um tal fenómeno só poderia interessar a quem queria fazer mal ao Messias, uma vez que assinalava o local exacto onde este poderia ser encontrado. Este raciocínio tinha por objectivo, segundo pude perceber, condenar o uso de uma estrela ou cometa como decoração natalícia. Mas terá a estrela ou cometa sido um fenómeno real ou não terá passado de um mero recurso literário, já que apenas S. Mateus a menciona, empolado pelo fértil imaginário medieval?

A Bíblia documenta dois acontecimentos que podem ser usados como balizas cronológicas para datação do nascimento de Jesus Cristo. O primeiro corresponde ao recenseamento ordenado pelo imperador Augusto por volta do ano 7 a. C., o segundo diz respeito à morte do próprio rei Herodes, que terá ocorrido poucos dias antes da Páscoa judaica, numa altura em que foi testemunhado um eclipse lunar. Neste ponto começam as incongruências, isto porque o célebre eclipse, que naquele tempo foi logo à partida encarado como um presságio, teve lugar a 13 de Março, quatro anos antes da data fixada pelo monge Dionísio, “O Exíguo”, para o nascimento de Cristo.
No século VI, Dionísio, “O Exíguo”, um monge de origem cita, após inúmeros cálculos fixou como primeiro ano da Era Cristã o ano 754 ad urbe condita, ou seja, o ano 754 a contar da fundação de Roma, cometendo um erro de quatro anos que ficou a dever-se ao seu desconhecimento da data exacta da morte de Herodes que, hoje sabe-se, foi no ano 750 da fundação de Roma, isto é, no ano 4 a.C..

O fenómeno astronómico relatado por S. Mateus, o surgimento e uma estrela muito brilhante, que pode se entendida como sendo um cometa, é algo vago e impreciso. Porém, há que salientar que os fenómenos astronómicos eram muito bem documentados pelos astrólogos da Antiguidade, quer europeus quer asiáticos, até porque eram olhados com suspeita e associados a crenças supersticiosas ligadas não apenas ao nascimento de reis mas sobretudo à prática da agricultura e à guerra. O facto é que não existe referência a nenhum acontecimento de semelhante envergadura entre os anos 7 e 4 a.C., ou seja, entre o recenseamento de Augusto e a morte de Herodes. Por outro lado, as fontes assinalam a passagem de um cometa no ano 12 a.C. (o Cometa Halley), demasiado cedo…

Uma conjunção rara…

No início do século XVII, o astrónomo alemão Johannes Kepler apercebeu-se de um fenómeno raro, mas ainda assim previsível, uma conjunção entre os planetas Júpiter e Saturno na constelação de Peixes. Segundo os cálculos efectuados por Kepler, este acontecimento teve igualmente lugar no ano 7 a.C., o qual veio a ser confirmado já no século XX através da descoberta de umas tabuinhas babilónicas, escritas em caracteres cuneiformes, que aludem precisamente a esse evento astronómico. A partir daqui é fácil fazer uma leitura simbólica do fenómeno, a mesma que certamente os Magos do Oriente, eles próprios astrólogos, terão feito. Júpiter é o rei dos deuses e Saturno é um deus ligado ao tempo cronológico e à justiça: “nasceu o rei que trará a justiça aos homens”.

Se confiarmos inteiramente neste raciocínio, então poderemos afirmar que à data fixada para o seu nascimento, Jesus Cristo teria já completado 6 anos de idade ou até um pouco mais, tendo em consideração que os Magos terão chegado a Bethleém algum tempo depois… Talvez devêssemos estar agora no ano 2016 ou 2017 d.C.…

O facto de esta conjunção surgir na constelação de Peixes, também é digna de nota. O peixe, conotado com elemento “água”, foi identificado na Antiguidade com o Povo Hebraico, conduzido para fora do Egipto por Moisés, o “salvo das águas”. Mais tarde, o peixe tornou-se num emblema por excelência do Cristianismo e inclusivamente o seu desenho estilizado chegou a figurar em ânforas romanas independentemente do conteúdo destas, sobretudo a partir do dominato de Constantino, imperador que oficializou o Cristianismo no Império Romano (século IV d.C.). A somar a isto, a palavra grega para peixe, Ichthys, forma um acrónimo com as letras da frase Iesus Christus Theos Yios Soter, que significa “Jesus Cristo filho de Deus salvador”. O Nascimento de Cristo inaugurou a Era astrológica de Peixes.

Uma manta e retalhos…

A religião cristã é bastante eclética na sua origem, apresentando-se como uma colagem de diversos aspectos que podem ser observados noutras religiões orientais que ofereciam ao Homem respostas acerca da morte e da vida no Além, ao contrário da religião oficial do Império Romano, centrada em torno dos deuses capitolinos (Júpiter, Juno e Minerva), que era omissa em relação a estas questões tão caras à humanidade.

Teremos de olhar para o Mitraísmo para percebermos de que forma a meia-noite de 24 de Dezembro foi assumida como a noite da Natividade a partir do século IV d.C., noite essa que está longe de ser corroborada pelo Novo Testamento.
Mitra era um importante deus do Zoroastrismo e encontrava-se ligado à ideia de Justiça, à semelhança de Saturno, bem como à disciplina militar. Embora o Mitraísmo fosse originariamente um culto indo-iraniano, citado nos Vedas, revestiu-se de uma enorme importância para o exército romano entre os séculos II e IV d.C.. A mitologia persa apresenta-o como tendo nascido numa gruta, aquecido por animais numa manjedoura que lhe servia de berço. O seu nascimento, também ele assinalado por uma estrela ou cometa, era celebrado na noite de 24 de Dezembro. As semelhanças entre este mito e o nascimento de Jesus Cristo, que não param por aqui, são evidentes, o que nos leva a concluir que houve uma fusão entre a mitologia e a História ou, por que não dizer, uma apropriação de estatutos a nível religioso. Por outro lado, a data estabelecida para celebração do Natal, encontra-se muito próxima ou mesmo sobreposta às festividades pagãs ligadas ao culto de deuses solares e que assinalavam o Solstício de Inverno, o que, de certa forma, servia para cativar aqueles que ainda cultuavam esses antigos deuses, uma estratégia que, como é bem sabido, fez parte da política cristã até quase à Baixa Idade Média: se não se conseguia aproximar as pessoas do Cristianismo, aproximava-se o Cristianismo das pessoas.

Quanto à revista de pendor religioso que veio parar-me acidentalmente às mãos, tenho apenas a acrescentar que embora os seus argumentos sejam válidos do ponto de vista da crença, tornam-se mera propaganda inútil quando confrontados com a História e com a Astronomia. Não vale a pena especularmos tão fervorosamente sobre o que nunca existiu.



terça-feira, 9 de novembro de 2010

Não Há Espaço...

"Não estudamos para a vida, mas para a Escola." Séneca


A vida é um lugar demasiado exíguo para que possamos habitá-lo sem que sejamos alguma vez confrontados com o desejo de liberdade ou com a simples escolha entre o conformismo e a reivindicação.

Queremos sentir que pertencemos a algo, que fazemos parte de um elenco necessário ao desenrolar da trama da vida, queremos ter um sentido de existência, descobrir um lugar que apenas nós possamos ocupar, tal como uma peça num quebra-cabeças, um verso num poema ou uma estrela na imensidão do Universo. É então que nos deparamos com a mais lívida das constatações: não há espaço para nós.

A Escola não nos ensina a viver, só nos ensina a estudar.

Os anos dedicados somente ao estudo, funcionam como uma espécie de redoma que nos ausenta do mundo, criando em nosso redor um sistema alternativo e ilusório que afasta o real das nossas vidas e nos embala à beira de um precipício. Ao acordar, damo-nos conta de que o nosso tempo já passou, como alguém que recobra os sentidos ao fim de longos anos de coma e se apercebe de que envelheceu sem que tenha vivenciado tal transformação.

A Escola sempre foi vista como sendo um recurso moralmente aceitável para o crescimento orientado e, por que não assumir, restritivo, do espírito humano. Nos séculos XVIII e XIX, e de acordo com as palvras de Kant, a Escola existia não necessariamente para transmitir conhecimentos aos mais novos, mas, antes, para os instruir na tão nobre prática do obedecimento das regras impostas pela Sociedade, evitando que mais tarde exprimissem livremente os seus ideais ou sequer os construíssem.

Devo dizer que a Escola dos nossos dias conseguiu pela inépcia aquilo que a Escola do século XIX não conseguiu pelo rigor e pela disciplina: evitar a dissidência.

Embora as batalhas de hoje sejam ainda as mesmas que produziram heróis e criminosos no passado, as arenas onde são travadas já não lembram os antigos cenários politico-religiosos, a mesma fé e a mesma questão de honra que transbordavam dos enfáticos discursos de outrora. Hoje em dia não há dissidência porque não há idealismo. Onde estão as referências, os nomes e os rostos que se elevavam em estandartes sobre as cabeças dos estudantes revolucionários? Não estão mais, perderam-se algures numa nota de rodapé quando saltaram dos polémicos noticiários para os enfadonhos livros de História, quando deixaram de ser gritados nas ruas e maltratados por políticos ambiciosos e opressores e passaram a ser monocordicamente articulados pelo tédio dos professores de História. Em poucas décadas, os grandes líderes do século XX perderam o fulgor, como uma fogueira que arde e por fim se extingue, como um antídoto que deixa de surtir efeito.

Já Voltaire, dizia que o espírito criativo das crianças era sufocado por "conhecimentos inúteis". A inutilidade de certos conhecimentos impostos às crianças e aos jovens é questionável, mas não deixa de ser evidente a atrofia que o excesso de pormenor produz sobre a imaginação, um estrangulamento que resulta de imediato na frustração, no desânimo e na sensação de vazio, nesse mesmo vazio que Darwin referiu um dia ter sentido em relação à Escola.

A Escola deveria ser o mais fecundo alicerce da sociedade, não um mero instrumento de inibição do pensamento e, menos ainda, um mecanismo que impeça o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. O aumento da escolaridade obrigatória tem sido sempre inversamente proporcional ao nível de exigência. Os conhecimentos diluem-se por doze anos de estudo obrigatório e acabam por se perder no marasmo da repetição. Se pegarmos, a título de exemplo, na matéria de História do 10º ao 12º ano, verificamos que o número de temas propostos, bem como o aprofundamento dos mesmos, torna-a estudável em pouco mais de 6 semanas e, no entanto, é prolongada por três anos.

Há no estudo um ócio perverso, um estatismo doloroso. Entretemo-nos, ao longo dos anos mais produtivos das nossas vidas, a arrecadar a escória das teorias de outros, entulho ideológico, bibelots ingénuos para os quais nunca encontramos lugar nas prateleiras da vida real, em vez de usarmos esse tempo imenso e tão fértil para construirmos o nosso próprio pensamento e darmos corpo aos nossos ideias. O ensino há muito se tornou um encosto: "encosta-te numa faculdade até teres vaga no mercado de trabalho". Não há espaço para tanta gente numa sociedade mecanizada. Antigamente, quando não havia uma "idade de reforma", também não havia uma "escolaridade obrigatória".

A Escola é um anestésico que nos torna incapazes de agir sobre as nossas próprias vidas e nos mortifica o espírito. O papel de "alavanca capaz de elevar o Povo ao nível da moral", como nas palavras de Guerra Junqueiro, adquiriu na actualidade um estatuto algo sombrio e esquivo, o de sorvedor da força que impulsiona a juventude a progredir. A estagnação é o seu mote e o refreamento o seu triunfo.

Estudar, é uma forma poética de dormir a vida.

sábado, 20 de março de 2010

Equação Emocional

Lembro-me de ter questionado a minha professora de História do 9º ano, acerca das causas que levaram ao crash da bolsa de Nova Iorque em 1929. A resposta foi insatisfatória mas consistente: os economistas não percebiam o que exactamente havia conduzido a tal fenómeno, por outras palavras, sabia-se como tinha acontecido, mas não o que o motivara.
Sempre que ouvimos falar das tragédias do passado ficamos apreensivos quanto ao futuro. A década que se seguiu ao crash trouxe desemprego em massa, carestia de vida e fome, flagelos que assolaram a sociedade ocidental por esta mesma ordem de acontecimentos, num efeito dominó. Ao entender, talvez, esse meu drama interior, a minha professora sossegou-me acrescentado que hoje em dia, entenda-se, há 14 anos atrás, o sistema económico havia sido aperfeiçoado para obstar a que um novo crash viesse a ocorrer e que, portanto, tal fenómeno não voltaria a dar-se. Só me recordo de ter pensado que se os próprios economistas não tinham conseguido prever o crash, com excepção de uma ou outra voz de Cassandra que ter-se-á manifestado naquele tempo, seria mais do que certo que algo do mesmo género voltasse a acontecer. Na verdade, assim como eu me interessei por perceber os mecanismos conducentes a esse facto histórico, também os historiadores e até psicanalistas e sociólogos se debruçaram sobre o assunto, chegando à mesma conclusão de que não era apenas possível haver novamente um crash bolsista, como este estava iminente.
Cálculos? Não, não fiz cálculos, nem eu nem os investigadores da História e da mente humana. A Economia não é matemática, é emoção pura! Enquanto os economistas não perceberem esta tão humana circunstância, muitos outros crashes suceder-se-ão. Quando as acções de uma dada empresa entram em queda, os accionistas em vez de começarem a comprá-las, como seria a atitude mais lógica, apressam-se a vendê-las e vice-versa, perdendo fortunas na roleta do sistema nervoso. Isto, por si só, demonstra até que ponto a Economia é um sistema irracional, assente na mais pura cadeia de impulsos psicológicos estimulados pelo meio.
Era eu ainda criança quando disse à minha mãe que um dia as casas seriam quase oferecidas, isto porque via à minha volta tanta gente sem ter onde morar e tantas casas ao abandono, não apenas casas antiquíssimas e belas mas também casas novas que ninguém comprava devido aos elevados preços praticados no mercado imobiliário. Em Portugal não chegámos ao ponto de comprar casas pelo preço de um cacho de bananas do tempo das colónias, mas na nossa vizinha Espanha levou-se mesmo ao pé da letra a célebre máxima de supermercado: “pague uma e leve duas”! Também isto, nenhum economista munido das suas matemáticas conseguiu prever.
Se julgamos que nos libertamos da emoção ao reduzir a nossa existência a uma fria equação matemática, plena de lógica e de razão, estamos muito enganados, e mais ainda quando o assunto é Economia. Há e sempre haverá crashes porque o homem tem fobia do real. O de 1929, tal como o que testemunhámos há dois anos, teve simplesmente a ver com o facto de o Homem dito “ocidental” ter deixado de pensar em bens de consumo concretos, com os cereais, o leite, a carne, os tijolos, as lãs, etc., para pensar exclusivamente em números expressos em acções, o mesmo é dizer, abstractizou a própria comida! Se havia uma tonelada de farinha, continuou a haver essa mesma tonelada. A crise económica de hoje, tal como o foi no passado, é mera patologia psicológica. O que realmente existiu, e existe, é uma crise financeira que acabou por contagiar a produção a todos os níveis. Trata-se, assim, de um vírus fictício que ataca um sistema impalpável, não o nosso prato!
Não sei se já vos ocorreu, mas sempre que usamos expressões tais como “bolsa de valores”, “dinheiro”, Ministério da Justiça”, “fronteiras”, entre milhares de tantas outras, não nos estamos a referir ao real perceptível, pois nada disto existe na Natureza, fomos nós, seres humanos, que criámos todos esses conceitos por temermos a realidade. Vivemos no Mundo Inteligível de Platão, enquanto o nosso corpo deambula pela esfera do Sensível e é confrontado com necessidades materiais. A dicotomia mente/corpo é a grande padroeira da angústia humana. Elevámos à nossa volta muros de fantasia para nos defendermos do espectro do real e afugentarmos a Natureza de onde viemos e com a qual já não sabemos lidar.
Não entendam este post como um ataque directo e deliberado a toda a Matemática, ainda que esta seja a maior das divagações possíveis, mas apenas à matemática inútil que se impõe entre nós e o real, reduzindo as nossas hipóteses de intuir o mundo e a sua espontaneidade. Ao complexificarmos cada vez mais o nosso pensamento, perdemos a capacidade de perceber as leis da simplicidade, as mesmas que outrora presidiram à construção das pirâmides egípcias, monumentos geniais cujo surgimento só pode hoje ser explicado com recurso a seres extraterrestres! As pontes romanas sobrevivem ao tempo porque a ele pertencem, suportam destemidamente as agressões da Natureza porque são unívocas com ela, enquanto as modernas obras de engenharia colapsam perante forças que as suas matemáticas ignoram.
Perdemo-nos de nós mesmos ao tentarmos domesticar o indomável, o nosso próprio espírito pleno de anseios e de ilusões. O simbolismo é a nossa glória tornada derrota pela desonra da ambição.
Quando tenho diante de mim um quadro escrito de um lado ao outro com a pomposa resolução de uma equação matemática penso: “Ainda bem que há quem pegue numa enxada para cultivar a terra, ou morreríamos todos de fome!”


quinta-feira, 11 de março de 2010

As Três Deusas

Ora remetidas para segundo plano, ora entronizadas como se de seres sobrenaturais se tratassem, as mulheres vêem permanentemente a sua esfera de acção social evoluir e nem sempre no sentido desejado. Definir os papéis sociais masculinos é sobremodo fácil, já o mesmo não pode ser dito em relação aos da Mulher. Poderíamos resumir a História da Mulher através da psicanálise freudiana e reconstruí-la com base nos ideais fantasmáticos masculinas que levam à apropriação de estatutos de parte a parte e a guerras identitárias insolúveis, mas tal não passaria de uma tentativa ingénua de omitir toda e qualquer responsabilidade da Mulher e subtrair-lhe, inclusive, o usufruto dos seus próprios erros.
Submissa por vezes, audaz por outras, a Mulher social desdobra-se em incontáveis facetas. Diante de Páris, herói troiano, perfilam-se as três deusas. O jovem segura na mão uma maçã e todo o universo de representações simbólicas que esse fruto carrega. Ele deverá oferecê-la à sua eleita e da sua escolha dependerá o futuro de Tróia. Avança Artémis, virgem deusa da caça, feiticeira lunar, grande Mãe, mas os seus estandartes não parecem suficientes para induzir Páris a atribuir-lhe o fruto vermelho, o seu coração. É a vez de Atena, forte, poderosa, sábia, matrona da guerra e do conhecimento, mas nem toda a sabedoria da deusa a tornam merecedora. Por fim e em silêncio, desfila Afrodite, deusa da beleza feminina e do amor. Num gesto delicado e despretensioso arrebata o coração do herói ao desprender as suas vestes diáfanas que deslizam sem ruído para o chão. A nudez é tudo quanto a deusa precisa para o convencer. A ela, Páris entrega a maçã irreflectidamente, impulso que levaria ao colapso de Tróia.
Afrodite personifica a mulher-corpo, a mulher sem voz, sem pensamento, o corpo animal, como diria Nabokov.
Encontramos na nossa sociedade genuínas representantes destes três estados femininos, destas três deusas, arquétipos do pensamento. Artémis é a mulher misteriosa, a guardiã do lar, a mãe que cuida e alimenta, a leoa que caça para os filhos e que os defende com a própria vida. Atena é a mulher que triunfa num mundo exclusivamente masculino, é a guerreira por excelência, a desbravadora. Se pensamos encontrá-la no topo das hierarquias empresariais, então teremos uma árdua tarefa pela frente, o que não invalida que sejamos, até certo ponto, bem sucedidos, já que algumas triunfam por seus méritos intelectuais. Mas não é no topo seja do que for que as devemos procurar, do mesmo modo que também não devemos buscar Artémis no matrimónio. Estas mulheres com a sua sabedoria e inteligência, com a sua coragem e determinação, com a sua alma, nada podem contra Afrodite, contra o corpo-objecto que sem uma palavra, um argumento sequer, basta-lhe tirar a roupa para vencer onde nenhuma outra vencerá!
A culpa é das mulheres? Não sejamos simplórios! Os comportamentos são sempre adaptáveis ao meio e funcionam como as leis do mercado, ou seja, baseados na oferta e na procura. Enquanto os homens não alterarem a sua forma de ver a mulher, esta terá sempre a infeliz tendência de usar o corpo em detrimento do espírito. Afinal, pensar para quê, argumentar em que sentido, defender que ideias, quando basta desprender um alfinete e deixar que a túnica se desdobre em pregas de silêncio? Recorrer às momices, aos cruzares de pernas, aos decotes generosos e a tudo o mais que a guerra pela ascensão social permita, é uma forma de sobrevivência como qualquer outra!
Em acréscimo, a inteligência feminina é dissuasora ou não vivêssemos nós no império das hormonas e não no da razão, como nos querem convencer. Plínio, ao referir-se a Cleópatra, disse que a sua beleza podia ser comparada à de qualquer outra mulher. Ora aqui temos um Homo Humanus que não se deixa condicionar pela sua própria biologia e que é capaz de ver alma onde outros só vêem corpo. Podemos concluir que às mulheres inteligentes devemos chamar “bonitas”, já que foi a beleza e não a inteligência que imortalizou a última rainha das Duas Terras, cujo maior desgosto não foi a morte do amado Júlio César, mas o primeiro incêndio que devastou a Biblioteca de Alexandria. De resto, é esta mesma biblioteca que a liga pelo fio do pensamento à história de uma outra mulher, Hipátia.

A Última Bibliotecária

A morte de Hipátia, famosa bibliotecária de Alexandria, filha do neoplatónico Teon e sua sucessora, mostra até que ponto a inteligência e o poder femininos podem tornar-se incómodos para os homens, sobretudo quando tais homens acreditam que a mulher descende de Eva e é, por assim dizer, a eterna tentadora do mundo.
Hipátia foi uma das mulheres mais inteligentes – ou será que devo dizer bonita? – que a humanidade produziu. Matemática, astrónoma, filósofa, oradora, historiadora, artista, poetisa, teóloga… Enumerar apenas alguns dos seus predicados intelectuais seria diminuí-la, pelo que não alargarei mais esta lista de saberes, pois para a completar devidamente seriam necessárias muitas páginas.
Cirilo, bispo de Alexandria, compactuou com o seu assassinato em Março do ano 415, apoiado por uma facção cristã intransigente que se opunha ao moderado Orestes, prefeito daquela cidade e amigo de Hipátia. A morte, ainda controversa, da bibliotecária foi brutal: torturada, esquartejada e queimada, até a carne lhe foi separada dos ossos! A biblioteca foi incendiada pela quarta e última vez, garantia de que o seu pensamento seria banido de entre os vivos, tal era o ódio que este santo homem e seus seguidores nutriam pela última guardiã da sabedoria humana. Cirilo foi canonizado, dado o carácter íntegro e inexorável com que perseguia e punia os que discordavam da sua forma torpe de pensar. Hoje dispõe de um lugar cativo no panteão demonológico da Igreja Católica, exímia na arte de misturar todo o género de anorexias espirituais com as mais sublimes e humildes das almas verdadeiramente santas, pelo que devemos tratá-lo por São, São Cirilo.
Com a morte de Hipátia calaram-se as vozes de Aristarco de Samos, de Eratóstenes e de tantos outros que haviam votado as suas vidas ao esclarecimento da humanidade doente. A Terra, agora quadrada, interrompeu o seu movimento em torno do Sol e, a pouco e pouco, a Filosofia transformou-se em Escolástica e a Ciência em superstição. A ignorância foi nesse tempo, assim como hoje, um cálice do mais deleitoso veneno servido copiosamente ao Homem. Depois de Hipátia e do último suspiro do maior repositório do conhecimento humano, a Biblioteca de Alexandria, só o obscurantismo.

Ainda bem que existiram e existem Mulheres belas como Hipátia ou eu já não seria capaz de sair à rua de cabeça erguida! 

Imagem: Antoine Watteau "A Decisão de Páris", Louvre, c. 1720, óleo sobre madeira.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Crucifixos e Água Benta

Não esperem encontrar neste “post” estórias bizarras ou testemunhos ergóticos temperados com alho, pois não farei aqui nenhuma exposição sistemática a respeito dessa criatura imaginária, saída da anti-estrutura social, à qual os Eslavos deram o nome de “vampiro”. Em vez disso, procurarei apenas dar a minha opinião sobre este tema – que parece ter voltado à ribalta, ou não vivêssemos nós uma fase neo-romântica, devido a factores de ordem sócio-cultural – que invadiu as nossas televisões, segundo me apercebi muito recentemente.
Um vampiro assume muitas formas. A ideia de um cadáver que se ergue do túmulo parece não passar de uma antropomorfização do conceito de doença ou, mais simplesmente, da recusa do nosso inconsciente em compreender e tolerar a questão da morte.

Numa novela de pendor gótico, o vampiro emerge sob uma aparência humana, enquanto na novela romântica este sobrevém com uma outra roupagem, a da patologia mental, como nos romances novecentistas. A diferença entre estes dois géneros literários, no fundo tão próximos, prende-se com as transferências de valores plásticos, em que a imagem de ossos humanos, sobretudo de caveiras, no primeiro caso, é transformada em pensamentos e sentimentos no segundo, do mesmo modo que um castelo pode ser convertido em mansão e um dragão num amor proibido. O reinado da rainha Victória constituiu-se como uma época de forte opressão ética e moral, embora de florescimento económico e artístico, o que dá consistência à teoria psicanalítica que vê na mordida do vampiro um meio de expressão de cariz sexual, já que o que está em causa a nível do simbólico é a ideia de penetração, algo que não produz novidade e do qual o mito grego de “Leda e o Cisne” era já paradigmático.

No romance de Charlotte Brontë, “Jane Eyre”, a esposa louca de Mr. Rochester acha-se trancada numa divisão escura, fora do alcance dos olhares curiosos. Ela é por excelência o vampiro que suga a energia daquele lar e que a todos causa repulsa e constrangimento. Os nossos hospitais psiquiátricos albergam uma vasta variedade desta tipologia, gente que se tornou incómoda para os seus semelhantes, pessoas que sofreram traumas impostos por uma sociedade que não as soube proteger da violência, da miséria, da guerra e do crime e que, por fim, lhes volta as costas, encerrando-as num lugar próprio para o dito efeito e sob o lema “o que não se vê, não se sente”.

A imagem do vampiro, conforme a literatura gótica e o cinema a concebem, migrou para o Leste europeu na bagagem cultural dos povos eslavos oriundos da Rússia Branca e da Polónia. Destes, apenas as tribos que se fixaram a Este do Elba conservaram impressões da sua religião original. A mitologia destes povos, forjada pela fome e pela dureza do clima, falava de mortos que se alimentavam do sangue dos vivos para sobreviverem ao túmulo, espalhando a doença nas aldeias. É notória a repetitiva associação entre o mito do vampiro e a proliferação de epidemias. Não precisamos de retroceder tão longe quanto o século V d.C. para percebermos este fenómeno, visto que há pouco mais de cem ou duzentos anos o vampiro dava pelo nome de “tuberculose”, como sucedeu, por exemplo, em Halifax, Nova Escócia, onde os habitantes chegaram a desenterrar corpos considerados suspeitos…

Para além de vampiros, a religião eslava fala-nos acerca de lobisomens; de “rusalki”, donzelas que sofreram uma morte prematura; de Bagnik e Bolotnik, homens velhos e imundos que habitavam os pântanos; e de “vila”, mulheres muito belas e fatais como sereias. O culto do deus Perun, patrono do raio e do trovão, foi completamente banido em 988 pelo rei Valdamarr I, o “Grande”, de origem viking, que , após converter-se ao Cristianismo, ordenou a destruição dos templos de Kiev e de Novgorod. A estátua do deus, com a sua cabeça de prata e barba de bronze, foi engolida pelas águas do Dniepre. O culto deste deus desenvolveu-se na Escandinávia sob o teónimo “Tor”. Uma outra deusa, Mielikki, patrona da caça e das florestas, que podemos encontrar na Europa Oriental até pelo menos ao século XVIII, era igualmente cultuada pelos escandinavos, o que não surpreende, visto Kiev ter sido uma colónia viking.

A meu ver, o vampiro de longe mais complexo e fascinante é o antropológico. É para este que chamo especial atenção, por tão raramente ser retratado e tantas vezes negligenciado.

Os Ndembu, povo semi-nómada e matriarcal do norte de Angola, estudado por Victor Turner e documentado na sua obra “The Forest of Symbols”, lançam uma luz completamente nova sobre o mito do vampiro através das suas crenças e rituais muito particulares. Para este povo, a figura do caçador é a mais prestigiada. Ele pode ser visto como uma personagem-tipo ou um actante, uma vez que encarna a bravura de espírito e o desafio das forças incógnitas e misteriosas que as florestas abrigam. Para se ser um bom caçador é preciso falhar. Só alguém que já tenha sido confrontado com a perda e com a derrota tem capacidade de assumir a liderança numa actividade perigosa. Um caçador valoroso que já tenha dado mostras da sua valentia é considerado protegido pelos antepassados, tem um mecenas que não pertence mais ao mundo dos vivos, e torna-se “mãe dos caçadores”. Esta função, roubada às mulheres, prende-se com uma apropriação de estatutos num jogo identitário que classifica o “grande caçador” como uma espécie de matriarca, já que é à mãe Natureza que ele vai buscar a carne. É precisamente aos antepassados da mãe que o caçador pede auxílio antes de se embrenhar na mata escura e densa, território desconhecido onde um sem-fim de criaturas malignas e poderosas o espreitam. A alma do morto guia o caçador até à caça. A sua função é a de revelar o que se encontra oculto. Quando o caçador retorna à aldeia, coloca a peça de carne ensanguentada sobre um altar bifurcado, o “chising’r”. O sangue escorre pela haste para debaixo de um tufo de erva onde o antepassado se esconde para o beber, antes de a carne ser distribuída pelos aldeões. É curiosa a analogia entre este gesto e o de um padre durante a missa. O vinho, que representa o sangue de Cristo, é tomado pelo sacerdote, mediador do Além, enquanto a hóstia, representativa da carne de Cristo, é dada aos fiéis…

As almas dos antepassados necessitam de sangue para voltarem à vida. No útero, os bebés são alimentados com o sangue materno, daí a grande importância do papel da mãe. É através das mulheres que os antepassados poderão reencontrar o caminho para a vida. Assim sendo, enquanto as mulheres da tribo dão o seu sangue aos filhos, os homens Ndembu chamam a si a função feminina de alimentar os espíritos dos mortos para que estes continuem a favorecê-los durante as caçadas.

O vampiro há muito deixou de ser um exclusivo da mitologia, o que sem dúvida justifica tão grande protagonismo. Não é mais entre campas empoeiradas ou dentro de caixões decrépitos que o devemos procurar, mas num cemitério mais vasto: o da mente. Crucifixos e água benta nada podem contra o vampiro psicológico, parasita da estrutura do Ego, que nos domina e consome. Faz todo o sentido o seu regresso aos tempos de agora, numa sociedade que se auto-corrói e que ocupa os seus membros com tarefas que nada produzem. Lisboa é um vampiro gigantesco, um monstro de enormes dentes e bocarra escancarada, uma gárgula que desde a Idade Média devora o trabalho árduo das vilas e aldeias que a alimentam. Os dirigentes políticos vieram sobre nós de mansinho “batendo as asas pela noite calada” e se não acordarmos a tempo “eles comem tudo e não deixam nada”!




sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Teúda e Manteúda, Por Que Não?

E já que falamos de Carnaval, este não parece ser o único produto por nós rotulado de brasileiro e que já era nosso por direito histórico muito antes de Pedro Álvares Cabral ter chegado a Terras de Vera Cruz. Certos vocábulos que sorrateiramente foram tomando conta da nossa Língua, vindos do outro lado do oceano, não se ficam por palavras de origem africana ou ameríndia, antes pelo contrário, por vezes catalogamos como brasileirismos expressões bem portuguesas que, todavia, há muito caíram em desuso. Em abono da verdade se diga que os brasileiros souberam preservar interessantes arcaísmos que agora nos devolvem através dos media.


Não resisto em partilhar convosco esta pérola linguística cujo significado passo a citar:

“Manteúdo: [Brasil] teúdo e ~; sustentado - do lat. manutenutu «seguro na mão».” (Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora)

Contra a explicação nada tenho a dizer, mas não posso concordar com “Brasil”, muito embora saiba que o célebre romance de Jorge Amado, “Tieta do Agreste”, foi o responsável pela reintrodução desta expressão idiomática no nosso Português, ainda que o tenha feito pela vertente da comédia, o que de algum modo a descaracteriza. Digo “reintrodução”, visto a sua origem ser portuguesa. Para prová-lo, farei aqui uma transcrição abreviada de uma carta régia de perdão, concedida por D. João I a uma moçoila de Tavira que era “tida e mantida” por um padre com o qual vivera amancebada, ou seja, em “pequado mortall”:

“Dom Joham (…) Saúde! Sabede que Philipa Gonçaluez molher solteira e moradora em Tauilla nos enuiou dizer que ela esteuera por manceba teuda e manteuda de hum Afonso Aluarez clereguo de missa morador em dicta uilla (…)” (D. João I - A.N.T.T.)

Julgo que não são necessárias mais palavras para percebermos que muitas vezes importamos do estrangeiro o nosso próprio património.

Esta expressão não é única, muitas mais poderiam ser aqui referidas. É incrível que tais termos saídos dos confins da Idade Média portuguesa possam ter sobrevivido a esse verdadeiro palimpsesto cultural que é o Brasil. O mesmo aplica-se aos padrões culturais que evoluíram desde o Paleolítico Superior Aurignacense de Ocidente para Oriente, regressando mais tarde já sob novas configurações, quando nos locais de origem já se encontrava destruído ou esquecido sob as pedras 'talhadas pela Natureza' e para as quais não temos qualquer explicação. 

Já sobre o famigerado acordo ortográfico, é melhor eu nem me pronunciar. Apenas quero deixar aqui uma pequena nota:

A discussão acerca da ortografia de palavras como “facto” e pacto”, às quais o acordo quer impor a síncope do “c”, transformando-as respectivamente em “fato” e “pato”, é anedótica, nem chega a ser triste! A confusão será instalada na escrita, já que tanto num caso como no outro as palavras não são sequer homófonas entre si, pelo menos no Português de Portugal, como poderão tornar-se homógrafas quando pronunciamos tão acentuadamente o “c”? A grafia evolui com a oralidade, não pode ser imposta por decreto! Qualquer língua viva é permeável à mudança, mas esse é um processo natural e não um assunto que possa ser debatido. Uma língua não pode ser tida como independente dos seus falantes nem manipulada de acordo com os interesses de meia dúzia de políticos. A Língua Portuguesa é de quem a fala! Recuso-me a chamar “pato” a um pacto ou “fato” a um facto, é uma ideia infeliz e de muito mau gosto.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Triunfo do Burlesco

Não sei se por desconhecimento ou por simples teimosia em plagiar os modelos alheios, Portugal sofre daquela triste tendência para a cópia – algo que parece começar logo nos bancos da escola – e chegamos mesmo ao ponto paradoxal de copiar dos outros aquilo que nós próprios demos a conhecer ao resto do mundo e que era parte integrante da nossa tradição, bem como da cultura europeia em geral, assistindo-se hoje em dia ao regresso de antigos hábitos já por nós esquecidos.


O Carnaval traça as suas origens de forma quase tão equívoca quanto o são os apetrechos e os gestos que o acompanham. Esta festa, conforme a conhecemos actualmente, regida pela fuga ao real e pela inversão dos papéis sociais, nasceu na Europa medieval como meio de censura, nomeadamente nas regiões mediterrânicas onde esta sempre atingiu uma maior amplitude.

Desengane-se quem pensa que o Carnaval teve início com a prática da Quaresma ainda em época romana. A quarentena penitencial e posteriormente a introdução da Semana Santa apenas vieram reforçar o carácter libertador e boémio da festa que as antecede. A própria etimologia da palavra é bastante dúbia, remetendo-nos, contudo, para a expressão “carne levamen”, ou seja, para a abstinência do consumo de carne. Também a palavra “Entrudo” parece advir de “introitus”, uma introdução à Quaresma. Por outro lado, as máscaras seguem o Homem desde o Paleolítico Superior. Inicialmente detinham um cunho demarcadamente ritualista e apotropaico ligado ao animismo, como ainda hoje sucede em várias culturas. No Teatro grego, a máscara adquiriu um aspecto mais representativo do que religioso e é precisamente na vertente profana que este objecto evoluirá durante a Idade Moderna e a contemporaneidade.

Muito antes do surgimento do Cristianismo já os povos clássicos e pré-clássicos pagãos celebravam uma festa “gorda” que marcava o fim das colheitas e, portanto, um período de abundância, a qual variava de acordo com o calendário agrícola de cada região.

O Carnaval parece-se mais com um forasteiro, ora banido ora acolhido, que aprendeu a navegar na maré dos tempos, trocando de máscara consoante o cenário social em que se desenrola, ou não fosse o embuste o seu mote e a adaptabilidade a arma da sobrevivência. Durante os cerca de mil anos da Idade Média, esta festa desenvolveu-se gradualmente em diferentes moldes com um factor em comum: a sátira de costumes. Nos meios urbanos, o “julgamento das raparigas” atingia um aparato mais provocador que nos campos, onde se revestia de um ideal mais solidário. Nas cidades, tudo era alvo de uma crítica ácida que abria um espaço favorável à intriga, ao desregramento e à devassa da vida alheia tornada festa! Os charivari eram tolerados até mesmo pela Igreja, que, omissa, pouco ou nada fazia para impedir que grupos de jovens expusessem a vida dos seus concidadãos, satirizando-os através da poesia e da música burlescas. Estes episódios de escárnio muitas vezes tinham início logo no primeiro dia de Janeiro, podendo vir a ser retomados ao longo do ano, como sucedia frequentemente no mês de Agosto. Basicamente, um charivari consistia numa serenata à “vítima”, quase sempre um adúltero ou um viúvo ou viúva casados em segundas núpcias. É sabido que durante séculos a Igreja negou-se a reconhecer a sacralidade das segundas núpcias, tendo acabado por intervir neste campo, alegando que o segundo casamento era tão sagrado como o primeiro, logo não poderia ser alvo de um charivari. Aos tribunais apenas chegavam os casos que terminavam em morte, mas a pouco e pouco o Código Penal francês veio considerar estes rituais de irrisão como ilícitos. A partir do terceiro quartel do século XVIII, os julgamentos carnavalescos e o enterro do Entrudo, adquiriram contornos mais teatrais. Em Carcassone, o Antigo Regime continuava a consentir na “virgem louca do ano”, uma boneca grotesca que circulava pelas ruas daquela cidade, satirizando a pureza das donzelas, os seus trajes e linguagem recatados.

Na Idade Média, o uso de máscaras não era fundamental nesta época de diversão e de pilhagens. Os bailes carnavalescos só vieram a ser instituídos no século XV pelo Papa Paulo II, como forma de controlar a inflamação da consciência e de impedir excessos, uma vez que era de todo impossível coibir o povo de retomar antigas práticas da Roma Imperial – sinais dos tempos renascentistas. Na sua cidade natal, Veneza, os bailes atingiram um esplendor muito particular. Aí, o ruído dos charivari foi sendo substituído pelo silêncio exuberante das máscaras que cobriam de mística os rostos por detrás delas. A noite confunde e indiferencia, nela reina o caos, as fronteiras esbatem-se, os ricos fidalgos misturam-se com os pobres, os credores com os devedores, os homens com as mulheres, os soldados com os ladrões, as donzelas com as meretrizes, é o mundo dionisíaco por excelência, desse mesmo Dionísio, patrono do vinho e da rambóia, de que Nietzsche nos fala, por oposição a Apolo, deus solar cuja luz tudo individualiza e expõe.

Não é à toa que esta festa é planeada de acordo com o calendário lunar. A Páscoa ocorre no primeiro Domingo após a lua cheia que se segue ao equinócio da Primavera (21 de Março), se andarmos 47 dias para trás iremos ter à terça-feira de Carnaval, daí a mobilidade de ambas as comemorações. A quarta-feira de cinzas corresponde ao enterro do Carnaval, cinzas que simbolizam a aniquilação da carne em prol da elevação da alma – a expiação dos pecados, a purificação.

Esquecidos de tudo isto, importámos do Brasil um Carnaval que nos é estranho e que no rigor do nosso Inverno surge descontextualizado e inadaptado. A festa que teve outrora como divisa a entrega aos prazeres da vida antes da abstinência da Quaresma, vê-se assim convertida – para não dizer prostituída – num auto-flagelo do qual nem os mais intrépidos penitentes medievais se lembrariam! Em vez dos antigos bailes e concursos de máscaras vemos desfilar pelas ruas rapariguinhas a tilintar de frio, que dançam incessantemente não de alegria mas para aquecerem o corpo arrepiado pela intempérie! É de assumir que o Carnaval se superou a ele próprio na sua contínua metamorfose; é sem dúvida o burlesco a triunfar sobre os foliões, a escravizá-los na sua incultura e falta de imaginação.

Fico feliz por ver que em algumas regiões do nosso país ainda há quem celebre o Carnaval à moda de outros tempos. O Carnaval transmontano, por exemplo, conserva grande parte do sentido de originalidade de antigamente. As máscaras artesanais evocam uma memória distante, falam-nos de idades longínquas em que o Homem respeitava e temia a Natureza, tempos em que a humanidade ainda se identificava com o mundo natural do qual fazia parte. Ainda acalento a esperança de ver tradições como esta recuperarem o território que têm vindo a perder em proveito da frivolidade, mas é provável que nesse dia alguém se lembre de dizer que estamos a imitar o carnaval da Eslovénia ou de outro qualquer país europeu. Não sei o que será mais aflitivo, o nacionalismo fanático ou a ignorância intransigente.



quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Nossa Senhora das Candeias (em resposta a um comentário)

Quando falamos em mitologias nada é por acaso. A semelhança existente entre o festival do Imbolc e a festa de Nossa Senhora das Candeias em Mourão, Distrito de Évora, não é de modo algum uma coincidência, mas antes o reflexo de uma origem cultural comum, o indo-europeu, assente num substrato neolítico, o que caracteriza a cultura europeia de um modo geral.
Durante a Idade Média verificou-se uma apropriação por parte do Cristianismo, em particular do Catolicismo, de locais de culto anteriormente pagãos. É usual encontrarmos monumentos megalíticos, afloramentos naturais e nascentes cristianizadas. A incorporação de elementos pagãos na mitologia cristã foi a ferramenta mais utilizada pelos paleocristãos (primeiros cristãos) no combate às velhas religiões. A receita era simples: se não podiam impedir o povo de cultuar os antigos deuses, sinalizavam os seus locais de adoração com emblemas cristãos ou instituíam oragos cujas funções eram análogas às das divindades pagãs suas antecessoras.

Conforme sucede com muitas outras tradições, também o Imbolc parte da observação da Natureza e dos seus ciclos. Na Antiguidade, o Homem explicava a maioria dos fenómenos naturais através de mitos. A religião mistérica de Elêusis, entre os antigos Gregos, socorria-se do mito de Perséfone (Proserpina para os Romanos) para explicar a alternância das estações do ano. Perséfone era filha de Deméter, deusa das colheitas, e de Zeus. Hades, deus do submundo, não resistira à beleza da jovem e decidira raptá-la enquanto esta andava sozinha pelos campos a colher flores. A planície de Ena, na Sicília, é por norma apresentada como cenário para o rapto. Zeus, que inicialmente havia sido conivente com este gesto, compadeceu-se da tristeza de Deméter e propôs a Hades devolver Perséfone à mãe. Contudo, a jovem já havia ingerido uma semente de romã que Hades lhe oferecera, ficando impedida de regressar definitivamente ao mundo dos vivos. O erro cometido por Perséfone parece ser um lugar-comum do imaginário colectivo, que nos alerta para nunca comermos nem bebermos o que quer que nos seja oferecido no “outro mundo”, sob pena de nele ficarmos retidos eternamente. Assim, Perséfone voltaria à terra dos vivos para visitar a mãe, na condição de regressar ao reino dos mortos ao fim de seis meses, repartindo a sua existência entre o Aquém e o Além até ao fim dos tempos. Deméter, feliz por estar de novo na companhia da filha, ainda que por pouco tempo, desabrocha em flor, contagiando os campos com a sua alegria. Durante a restante metade do ano, Perséfone retorna ao submundo do qual foi feita deusa. Nessa altura, Deméter inunda a terra com o seu desgosto.

Metaforicamente, Perséfone remete-nos para a semente que é lançada à terra no Outono, permanecendo na escuridão ctoniana durante todo o Inverno até acudir ao chamamento da luz no início da Primavera.

Este mito ilustra bem o facto de que estas histórias representam muito mais do que simples poesia, elas encerram ensinamentos que só aos Iniciados eram tornados explícitos.

Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora da Candelária, a hagionímica varia consoante as terras e os falares, mas há algo que lhes é transversal: a ideia de luz. Sendo o mimetismo uma parte integrante da magia religiosa, o jovem Sol é aqui representado pela chama tímida acesa no Imbolc quando os dias caminham para o equinócio da Primavera e o fotoperíodo aumenta progressivamente até culminar num Sol adulto, numa fogueira exuberante ateada no dia mais longo do ano, a 21 de Junho, no solstício de Verão.

O conceito que subjaz à festa de Nossa Senhora das candeias é, em todo o caso, o mesmo que transformou o Imbolc, em honra da deusa Brighid, em Candlemas (Candelária), em hora de Santa Brígida, um banquete de luz em homenagem ao Sol que trará nova vida à terra.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Imbolc, a luz do ano...

O tempo é curvo e a Roda do Ano volta a girar. Do velho nasce o novo e tudo recomeça no cumprimento do eterno devir.


O Imbolc reabre os portais da vida adormecida sob o manto gelado do Inverno. O nome deste festival, cujas raízes mergulham no nosso passado indo-europeu, significa “purificação”. Os Celtas festejavam-no a 1 de Fevereiro em honra de Brighid, deusa da fertilidade e da medicina, protectora dos bardos e dos ferreiros. A cor branca associa-se-lhe lembrando o leite materno e a esperança no reinício de um novo ciclo. Na noite ardem velas que guiam os passos da deusa de volta ao mundo. Os primeiros sinais de vida retornam à terra; as árvores eclodem em botão; os campos vestem-se de verde e as primeiras flores rompem os solos em busca de luz. A deusa é jovem, tal como o ano que transporta no ventre.

Segundo a tradição mitológica mais antiga, Brighid é filha de Daghda e de Morrighan – filha da Vida da Morte – e irmã de Ogma, o deus que ofereceu a escrita sagrada aos homens, o Ogam. À semelhança de Morrighan, Brighid é uma deusa tripla, é sucessivamente virgem, mãe fecunda e velha sábia à medida que percorre a curva do ano, desde as sementeiras até às colheitas. O seu corpo é terra, o seu espírito é fogo, o seu sangue é a água dos rios e dos mares, a sua mente é ar. O conhecimento dos ciclos da vida era essencial para quem dependia quase exclusivamente da agricultura e da pastorícia.

A partir do século V d.C., a imagem da deusa fundiu-se à da padroeira da Irlanda, Santa Brígida, fundadora do mosteiro de Kildare. O fogo perpétuo aí aceso pela santa manteve-se vivo até ao século XIII, altura em que se extinguiu, voltando de imediato a ser ateado. Diz-se que após 19 noites aos cuidados das freiras, as chamas mantiveram-se acesas sem necessitarem de ser alimentadas. O fogo sagrado continuou a arder até à supressão dos mosteiros por Henrique VIII, no século XVI. Em 1993, uma freira devota de Santa Brígida, Mary Minehan, reacendeu a chama no reatar da antiga tradição. Desde então, o fogo purificador de Brighid arde como uma candeia que nos mostra o caminho na caverna escura da altivez humana.
É hora de fazer um balanço do que ficou para trás e de dar as boas-vindas ao novo ciclo que agora se inicia.

A engrenagem do tempo - O Calendário Maia

Os Maias, povo ameríndio cuja expansão cultural atingiu o seu apogeu entre cerca de 250 e 900 d.C., criaram um intrincado sistema de calendarização que tem vindo a causar celeuma desde o início do século XX, devido sobretudo à interpretação aziaga que lhe é erradamente atribuída.


Os Maias, bem como outros povos seus conterrâneos, serviam-se da observação do Sol e da Lua, bem como das posições do planeta Vénus, da constelação das Plêiades, à qual chamavam “olho da serpente”, e das Híades (constelação de Touro). Não é de todo fácil explicar por meras palavras o modo de funcionamento deste calendário, sendo que também este facto constitui, por si só, uma parte importante do mesmo, como mais à frente compreenderão. A interpretação e manutenção do calendário estava a cargo da classe sacerdotal e obedecia a um sistema algo complexo que passo a expor:

Imaginemos, para o efeito, um sistema de três rodas móveis concêntricas ou uma engrenagem composta por três rodas dentadas, como rotores de cifra ou de um mecanismo de um relógio, que constituam os três sistemas de calendarização que os Maias utilizavam em simultâneo: o Tzolkin – calendário religioso com fins divinatórios, usado para baptizar crianças e decidir quais os dias favoráveis aos confrontos bélicos e às cerimónias; o Haab – calendário agrícola; e o calendário de Vénus que assentava na observação das alterações da posição deste planeta tão caro aos Maias.

O Tzolkin consistia num “ano curto” de 260 dias divididos por 13 meses de 20 dias, sendo que cada dia era designado pelo nome de um deus (imix, ik, akbal, kan, chicchan, cimi, manik, lamat, muluc, oc, chuen, eb, ben, ix, men, cib, caban, eiznab, cauac e ahau). Este sistema era baseado nos ciclos astronómicos das Plêiades e das Híades e já existia na civilização Zapotec, anterior ao período maia clássico. Os templos da cidade de Teotihucán, por exemplo, estão orientados para o ocaso das Plêiades.

Numa época tardia, ao Tzolkin foi acrescentado um quarto calendário independente do Haab, o Tun-Uc, um ciclo lunar feminino de 28 dias (mês natural) que prefazia 364 dias, uma diferença de 104 dias em relação ao ano Tzolkin. Assim sendo, estes dois calendários só voltavam ao ponto de partida ao fim de 1820 dias, ou seja, 5 Tun-Uc completos (364×5), o que equivale a 7 Tzolkin (260×7). Por estes cálculos, a roda do ano sagrado Tzolkin girava sempre duas vezes a mais para se coordenar com o Tun-Uc.

O Haab, calendário civil agrícola, usado para determinar as alturas do ano mais propícias às sementeiras, consistia em 18 meses de 20 dias, seguidos de um mês de apenas 5 dias chamado Uayeb, o que prefazia um total de 365 dias, um ano solar. Estes últimos 5 dias do ano eram, para os Maias, momentos de terror, uma vez que não era possível saber-se se os deuses dariam início a um novo ano ou se o mundo seria destruído no último instante. Se tudo corresse conforme o desejado, celebrava-se a festa do Fogo Novo, que na época da conquista espanhola calhava a 19 de Novembro. Durante o período clássico, os dias do Haab foram numerados de 0 a 19, em vez de 1 a 20.

Assim, cada dia era indicado de acordo com ambos os calendários, o Tzolkin e o Haab, seguido do nome do deus. Como exemplo, um dia podia designar-se por “3 ahau 18 pop”, sendo que a primeira data corresponde ao Tzolkin e a segunda ao Haab. Deste modo eram necessários quatro termos para indicar um dia, ou seja, um número (de 1 a 13), o nome de um deus (entre 20 nomes), outro número (de 0 a 19) e o nome do mês (entre 18 nomes).

Estes dois sistemas foram combinados para que um ciclo ficasse completo de 52 em 52 anos, o que era conhecido como a “ Volta do Calendário”.

Além do período de 52 anos, era muito mais relevante o seu dobro, o ciclo de 104 anos, já que no final dos três calendários, o Tzolkin, o Haab e o de Vénus (104 anos equivalem a 208 revoluções deste planeta em torno do sol), voltavam os três ao mesmo ponto de partida, à mesma data.

Por outro lado, o calendário de contagem longa ou “Grande Ciclo” teve início, segundo a tradição da Quarta Criação Maia, em Agosto de 3114 a.C. e terminará em Dezembro de 2012.

Esta contagem consistia num Tun de 360 dias. Vinte Tuns perfazem um Katun (7200 dias) e vinte Katun perfazem um Baktun (144000 dias). Treze Baktun formam o “Grande Ciclo” (1872000 dias, perto de 5130 anos). No final de cada Baktun, o mundo passaria por uma mudança profunda. É preciso que se diga que os Maias viam a Terra como ela é, um organismo em permanente mutação que obedece a ciclos de criação e de destruição. Todavia, essa destruição não era encarada da perspectiva material, mas sim da evolução da consciência. A mitologia maia oferece-nos uma visão daquele que terá sido o início da Quarta Criação, ou seja, o mundo conforme ele teria sido em Agosto do ano 3114 a.C., e nele não estão presentes episódios de catástrofe, apenas de reorganização do estatuto dos deuses.

Posto isto, conclui-se que não é fácil apreender este sistema numa primeira abordagem, factor com qual a classe sacerdotal contava para poder controlar o povo e torná-lo submisso aos “desígnios dos deuses”, algo que parece ter voltado a vigorar nos tempos que correm. É incrível como sacerdotes desaparecidos há séculos possam estar ainda a influenciar o nosso pensamento. Actualmente, o calendário maia continua a ser mantido por comunidades religiosas da Guatemala.

Segundo diversos investigadores, existe uma correlação entre a era que findará no solstício de Inverno de 2012 e o calendário juliano, criado a pedido de Júlio César em 45 a.C.. No entanto, há que não esquecer o facto de que este calendário já não corresponde ao actual desde a reforma levada a efeito pelo Papa Gregório XIII em 1582, ano em que o ponto vernal (equinócio da Primavera) seria a 11 de Março e não a 21, isto porque já se verificava um desfasamento de cerca de 10 dias entre o calendário coevo e o movimento real da Terra.

Por último, a prova irrefutável de que o calendário maia não profetiza o fim do mundo, reside numa boda real prevista para o ano de 4772 d. C., o que mais uma vez comprova que os Maias não encaravam o final de um Baktun como uma destruição catastrófica massiva, mas apenas como uma mudança necessária e positiva.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

E quando o mundo não acabar...


Existe em todos nós uma certa tendência para imaginarmos – já que dispomos dessa poderosa ferramenta que é a imaginação – como seria o mundo sem a humanidade, como seria se algo que efectivamente “é” o deixasse de ser de um momento para o outro. Imaginamos a vida qual criança que fecha a porta do quarto para logo em seguida voltar a abri-la devagarinho, na curiosidade de descobrir como é o seu pequeno mundo na sua ausência.
É do conhecimento geral que o mundo vai acabar daqui a dois anos… ou não será assim?
Talvez andemos a rezar demasiado no altar de Hollywood e a sacrificarmo-nos aos seus deuses, sem nos darmos conta. Quase todos os dias sou confrontada com pessoas de diversas idades, que acreditam que algo aterrador vai ter lugar muito em breve (talvez “numa sala de cinema perto de si”), de acordo com o tão falado e pouco explicado calendário maia. Desde catástrofes naturais sem precedentes – porque já não guardamos nos arquivos da nossa memória a última erupção do Thera, bem como de outras catástrofes semelhantes – até profundas transformações a nível sócio-económico, sem descurar as subtis e não menos atraentes alterações no “estádio espiritual do planeta Terra”, o cardápio, já se viu, é variado, e o milenarismo arranja sempre uma forma de nos acenar com o seu estandarte de assombros, mesmo quando já ultrapassámos mais um milénio…
E eis que “A Guerra dos Mundos” de Orson Welles volta à ribalta, agora sob a forma de um número: “2012”.
Existe, porém, um ponto de vista com qual não posso deixar de concordar: as possíveis catástrofes naturais servirão para unir todos os povos em torno de uma causa comum, algo que só a nossa tecnologia torna possível.
Actualmente, dispomos de meios informativos, estes sim sem precedentes. No século XVII a C. quem terá tido conhecimento da erupção do Thera? Milhares de pessoas e de animais morreram de fome na Europa devido ao Inverno nuclear que se lhe seguiu, isto sem mencionar as sete pragas do Egipto e o desaparecimento da civilização minoica. Nessas épocas remotas, as notícias calcorreavam os caminhos com um atraso de meses, de anos e até de séculos, ao ponto de chegarem às populações mais distantes sob a forma de lendas capazes de transformar um pequeno exército de cem homens num gigante de cem cabeças.
Há quem faça do actual pesadelo haitiano um arauto do que está por vir, mas se temos acesso ao que se passa no Haiti e noutras partes do mundo é porque dispomos de meios de divulgação actualizados ao minuto. Por quantas catástrofes o Haiti terá passado sem que os europeus e outros povos o soubessem?
E, como as notícias se atropelam umas às outras a um ritmo incessante, em breve o Haiti será novamente remetido para as sombras onde sempre viveu, juntamente com a misteriosa cultura e reis escravos megalómanos de que a sua História é feita. É pena que assim seja e é também triste que só agora se dê atenção a um país que, de acordo com as avisadas palavras de Marion Zimmer Bradley, nunca foi levado a sério.
O mundo acaba e recomeça a cada instante, a cada dia. Os Minoicos presenciaram o fim do seu mundo diante da fúria incandescente do Thera; quem sucumbe debaixo dos escombros de um terramoto vê o mundo fechar-se em torno de si; quem na cama de um hospital exala um último suspiro vê o mundo apagar-se a seus olhos… O mundo é isto mesmo, algo esquivo, presente e ausente a um só tempo.
Nem os próprios Maias, autores de tão mediático calendário, foram capazes de prever o fim da sua civilização, melhor dizendo, da transformação da sua sociedade noutras.
Quisera acreditar que fosse possível progredirmos espiritualmente enquanto espécie, quer através da nossa consciência quer mediante catástrofes naturais que expusessem a nossa pequenez e fragilidade, que derruissem o nosso despotismo, que afogassem a nossa arrogância, que reduzissem a cinzas as nossas certezas e que pusessem termo à exploração do Homem pelo Homem.
Não se trata mais de imaginar como seria o mundo sem nós, antes como seríamos nós sem o mundo do qual nascemos e onde fomos criados, sem este mundo capaz de nos abrigar e de suportar a nossa ingratidão, como uma mãe sustenta um filho.