segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
A Estrela de Bethleém
Publicada por Isabella à(s) 20:51 8 comentários
Etiquetas: Bethleém, bíblia, dionísio o exíguo, estrela de belém, herodes, jesus cristo, kepler, mitologia cristã, mitraísmo, natividade, noite de natal, reis magos, são mateus, vedas, zoroastrismo
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Não Há Espaço...
A vida é um lugar demasiado exíguo para que possamos habitá-lo sem que sejamos alguma vez confrontados com o desejo de liberdade ou com a simples escolha entre o conformismo e a reivindicação.
Queremos sentir que pertencemos a algo, que fazemos parte de um elenco necessário ao desenrolar da trama da vida, queremos ter um sentido de existência, descobrir um lugar que apenas nós possamos ocupar, tal como uma peça num quebra-cabeças, um verso num poema ou uma estrela na imensidão do Universo. É então que nos deparamos com a mais lívida das constatações: não há espaço para nós.
A Escola não nos ensina a viver, só nos ensina a estudar.
Os anos dedicados somente ao estudo, funcionam como uma espécie de redoma que nos ausenta do mundo, criando em nosso redor um sistema alternativo e ilusório que afasta o real das nossas vidas e nos embala à beira de um precipício. Ao acordar, damo-nos conta de que o nosso tempo já passou, como alguém que recobra os sentidos ao fim de longos anos de coma e se apercebe de que envelheceu sem que tenha vivenciado tal transformação.
A Escola sempre foi vista como sendo um recurso moralmente aceitável para o crescimento orientado e, por que não assumir, restritivo, do espírito humano. Nos séculos XVIII e XIX, e de acordo com as palvras de Kant, a Escola existia não necessariamente para transmitir conhecimentos aos mais novos, mas, antes, para os instruir na tão nobre prática do obedecimento das regras impostas pela Sociedade, evitando que mais tarde exprimissem livremente os seus ideais ou sequer os construíssem.
Devo dizer que a Escola dos nossos dias conseguiu pela inépcia aquilo que a Escola do século XIX não conseguiu pelo rigor e pela disciplina: evitar a dissidência.
Embora as batalhas de hoje sejam ainda as mesmas que produziram heróis e criminosos no passado, as arenas onde são travadas já não lembram os antigos cenários politico-religiosos, a mesma fé e a mesma questão de honra que transbordavam dos enfáticos discursos de outrora. Hoje em dia não há dissidência porque não há idealismo. Onde estão as referências, os nomes e os rostos que se elevavam em estandartes sobre as cabeças dos estudantes revolucionários? Não estão mais, perderam-se algures numa nota de rodapé quando saltaram dos polémicos noticiários para os enfadonhos livros de História, quando deixaram de ser gritados nas ruas e maltratados por políticos ambiciosos e opressores e passaram a ser monocordicamente articulados pelo tédio dos professores de História. Em poucas décadas, os grandes líderes do século XX perderam o fulgor, como uma fogueira que arde e por fim se extingue, como um antídoto que deixa de surtir efeito.
Já Voltaire, dizia que o espírito criativo das crianças era sufocado por "conhecimentos inúteis". A inutilidade de certos conhecimentos impostos às crianças e aos jovens é questionável, mas não deixa de ser evidente a atrofia que o excesso de pormenor produz sobre a imaginação, um estrangulamento que resulta de imediato na frustração, no desânimo e na sensação de vazio, nesse mesmo vazio que Darwin referiu um dia ter sentido em relação à Escola.
A Escola deveria ser o mais fecundo alicerce da sociedade, não um mero instrumento de inibição do pensamento e, menos ainda, um mecanismo que impeça o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. O aumento da escolaridade obrigatória tem sido sempre inversamente proporcional ao nível de exigência. Os conhecimentos diluem-se por doze anos de estudo obrigatório e acabam por se perder no marasmo da repetição. Se pegarmos, a título de exemplo, na matéria de História do 10º ao 12º ano, verificamos que o número de temas propostos, bem como o aprofundamento dos mesmos, torna-a estudável em pouco mais de 6 semanas e, no entanto, é prolongada por três anos.
Há no estudo um ócio perverso, um estatismo doloroso. Entretemo-nos, ao longo dos anos mais produtivos das nossas vidas, a arrecadar a escória das teorias de outros, entulho ideológico, bibelots ingénuos para os quais nunca encontramos lugar nas prateleiras da vida real, em vez de usarmos esse tempo imenso e tão fértil para construirmos o nosso próprio pensamento e darmos corpo aos nossos ideias. O ensino há muito se tornou um encosto: "encosta-te numa faculdade até teres vaga no mercado de trabalho". Não há espaço para tanta gente numa sociedade mecanizada. Antigamente, quando não havia uma "idade de reforma", também não havia uma "escolaridade obrigatória".
A Escola é um anestésico que nos torna incapazes de agir sobre as nossas próprias vidas e nos mortifica o espírito. O papel de "alavanca capaz de elevar o Povo ao nível da moral", como nas palavras de Guerra Junqueiro, adquiriu na actualidade um estatuto algo sombrio e esquivo, o de sorvedor da força que impulsiona a juventude a progredir. A estagnação é o seu mote e o refreamento o seu triunfo.
Estudar, é uma forma poética de dormir a vida.
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sábado, 20 de março de 2010
Equação Emocional
Publicada por Isabella à(s) 17:33 2 comentários
Etiquetas: crash bolsista, economia, emoção, matemática, psicanálise
quinta-feira, 11 de março de 2010
As Três Deusas
Publicada por Isabella à(s) 11:51 3 comentários
Etiquetas: a decisão de páris, Afrodite, Artémis, As três deusas, Atena, cleópatra, Hipácia, hipátia, hsitória da mulher, mitologia, psicanálise, sociologia
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Crucifixos e Água Benta
Não esperem encontrar neste “post” estórias bizarras ou testemunhos ergóticos temperados com alho, pois não farei aqui nenhuma exposição sistemática a respeito dessa criatura imaginária, saída da anti-estrutura social, à qual os Eslavos deram o nome de “vampiro”. Em vez disso, procurarei apenas dar a minha opinião sobre este tema – que parece ter voltado à ribalta, ou não vivêssemos nós uma fase neo-romântica, devido a factores de ordem sócio-cultural – que invadiu as nossas televisões, segundo me apercebi muito recentemente.
Um vampiro assume muitas formas. A ideia de um cadáver que se ergue do túmulo parece não passar de uma antropomorfização do conceito de doença ou, mais simplesmente, da recusa do nosso inconsciente em compreender e tolerar a questão da morte.
No romance de Charlotte Brontë, “Jane Eyre”, a esposa louca de Mr. Rochester acha-se trancada numa divisão escura, fora do alcance dos olhares curiosos. Ela é por excelência o vampiro que suga a energia daquele lar e que a todos causa repulsa e constrangimento. Os nossos hospitais psiquiátricos albergam uma vasta variedade desta tipologia, gente que se tornou incómoda para os seus semelhantes, pessoas que sofreram traumas impostos por uma sociedade que não as soube proteger da violência, da miséria, da guerra e do crime e que, por fim, lhes volta as costas, encerrando-as num lugar próprio para o dito efeito e sob o lema “o que não se vê, não se sente”.
A imagem do vampiro, conforme a literatura gótica e o cinema a concebem, migrou para o Leste europeu na bagagem cultural dos povos eslavos oriundos da Rússia Branca e da Polónia. Destes, apenas as tribos que se fixaram a Este do Elba conservaram impressões da sua religião original. A mitologia destes povos, forjada pela fome e pela dureza do clima, falava de mortos que se alimentavam do sangue dos vivos para sobreviverem ao túmulo, espalhando a doença nas aldeias. É notória a repetitiva associação entre o mito do vampiro e a proliferação de epidemias. Não precisamos de retroceder tão longe quanto o século V d.C. para percebermos este fenómeno, visto que há pouco mais de cem ou duzentos anos o vampiro dava pelo nome de “tuberculose”, como sucedeu, por exemplo, em Halifax, Nova Escócia, onde os habitantes chegaram a desenterrar corpos considerados suspeitos…
Para além de vampiros, a religião eslava fala-nos acerca de lobisomens; de “rusalki”, donzelas que sofreram uma morte prematura; de Bagnik e Bolotnik, homens velhos e imundos que habitavam os pântanos; e de “vila”, mulheres muito belas e fatais como sereias. O culto do deus Perun, patrono do raio e do trovão, foi completamente banido em 988 pelo rei Valdamarr I, o “Grande”, de origem viking, que , após converter-se ao Cristianismo, ordenou a destruição dos templos de Kiev e de Novgorod. A estátua do deus, com a sua cabeça de prata e barba de bronze, foi engolida pelas águas do Dniepre. O culto deste deus desenvolveu-se na Escandinávia sob o teónimo “Tor”. Uma outra deusa, Mielikki, patrona da caça e das florestas, que podemos encontrar na Europa Oriental até pelo menos ao século XVIII, era igualmente cultuada pelos escandinavos, o que não surpreende, visto Kiev ter sido uma colónia viking.
A meu ver, o vampiro de longe mais complexo e fascinante é o antropológico. É para este que chamo especial atenção, por tão raramente ser retratado e tantas vezes negligenciado.
Os Ndembu, povo semi-nómada e matriarcal do norte de Angola, estudado por Victor Turner e documentado na sua obra “The Forest of Symbols”, lançam uma luz completamente nova sobre o mito do vampiro através das suas crenças e rituais muito particulares. Para este povo, a figura do caçador é a mais prestigiada. Ele pode ser visto como uma personagem-tipo ou um actante, uma vez que encarna a bravura de espírito e o desafio das forças incógnitas e misteriosas que as florestas abrigam. Para se ser um bom caçador é preciso falhar. Só alguém que já tenha sido confrontado com a perda e com a derrota tem capacidade de assumir a liderança numa actividade perigosa. Um caçador valoroso que já tenha dado mostras da sua valentia é considerado protegido pelos antepassados, tem um mecenas que não pertence mais ao mundo dos vivos, e torna-se “mãe dos caçadores”. Esta função, roubada às mulheres, prende-se com uma apropriação de estatutos num jogo identitário que classifica o “grande caçador” como uma espécie de matriarca, já que é à mãe Natureza que ele vai buscar a carne. É precisamente aos antepassados da mãe que o caçador pede auxílio antes de se embrenhar na mata escura e densa, território desconhecido onde um sem-fim de criaturas malignas e poderosas o espreitam. A alma do morto guia o caçador até à caça. A sua função é a de revelar o que se encontra oculto. Quando o caçador retorna à aldeia, coloca a peça de carne ensanguentada sobre um altar bifurcado, o “chising’r”. O sangue escorre pela haste para debaixo de um tufo de erva onde o antepassado se esconde para o beber, antes de a carne ser distribuída pelos aldeões. É curiosa a analogia entre este gesto e o de um padre durante a missa. O vinho, que representa o sangue de Cristo, é tomado pelo sacerdote, mediador do Além, enquanto a hóstia, representativa da carne de Cristo, é dada aos fiéis…
As almas dos antepassados necessitam de sangue para voltarem à vida. No útero, os bebés são alimentados com o sangue materno, daí a grande importância do papel da mãe. É através das mulheres que os antepassados poderão reencontrar o caminho para a vida. Assim sendo, enquanto as mulheres da tribo dão o seu sangue aos filhos, os homens Ndembu chamam a si a função feminina de alimentar os espíritos dos mortos para que estes continuem a favorecê-los durante as caçadas.
O vampiro há muito deixou de ser um exclusivo da mitologia, o que sem dúvida justifica tão grande protagonismo. Não é mais entre campas empoeiradas ou dentro de caixões decrépitos que o devemos procurar, mas num cemitério mais vasto: o da mente. Crucifixos e água benta nada podem contra o vampiro psicológico, parasita da estrutura do Ego, que nos domina e consome. Faz todo o sentido o seu regresso aos tempos de agora, numa sociedade que se auto-corrói e que ocupa os seus membros com tarefas que nada produzem. Lisboa é um vampiro gigantesco, um monstro de enormes dentes e bocarra escancarada, uma gárgula que desde a Idade Média devora o trabalho árduo das vilas e aldeias que a alimentam. Os dirigentes políticos vieram sobre nós de mansinho “batendo as asas pela noite calada” e se não acordarmos a tempo “eles comem tudo e não deixam nada”!
Publicada por Isabella à(s) 19:05 1 comentários
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
Teúda e Manteúda, Por Que Não?
E já que falamos de Carnaval, este não parece ser o único produto por nós rotulado de brasileiro e que já era nosso por direito histórico muito antes de Pedro Álvares Cabral ter chegado a Terras de Vera Cruz. Certos vocábulos que sorrateiramente foram tomando conta da nossa Língua, vindos do outro lado do oceano, não se ficam por palavras de origem africana ou ameríndia, antes pelo contrário, por vezes catalogamos como brasileirismos expressões bem portuguesas que, todavia, há muito caíram em desuso. Em abono da verdade se diga que os brasileiros souberam preservar interessantes arcaísmos que agora nos devolvem através dos media.
Não resisto em partilhar convosco esta pérola linguística cujo significado passo a citar:
“Manteúdo: [Brasil] teúdo e ~; sustentado - do lat. manutenutu «seguro na mão».” (Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora)
Contra a explicação nada tenho a dizer, mas não posso concordar com “Brasil”, muito embora saiba que o célebre romance de Jorge Amado, “Tieta do Agreste”, foi o responsável pela reintrodução desta expressão idiomática no nosso Português, ainda que o tenha feito pela vertente da comédia, o que de algum modo a descaracteriza. Digo “reintrodução”, visto a sua origem ser portuguesa. Para prová-lo, farei aqui uma transcrição abreviada de uma carta régia de perdão, concedida por D. João I a uma moçoila de Tavira que era “tida e mantida” por um padre com o qual vivera amancebada, ou seja, em “pequado mortall”:
Julgo que não são necessárias mais palavras para percebermos que muitas vezes importamos do estrangeiro o nosso próprio património.
Esta expressão não é única, muitas mais poderiam ser aqui referidas. É incrível que tais termos saídos dos confins da Idade Média portuguesa possam ter sobrevivido a esse verdadeiro palimpsesto cultural que é o Brasil. O mesmo aplica-se aos padrões culturais que evoluíram desde o Paleolítico Superior Aurignacense de Ocidente para Oriente, regressando mais tarde já sob novas configurações, quando nos locais de origem já se encontrava destruído ou esquecido sob as pedras 'talhadas pela Natureza' e para as quais não temos qualquer explicação.
Já sobre o famigerado acordo ortográfico, é melhor eu nem me pronunciar. Apenas quero deixar aqui uma pequena nota:
A discussão acerca da ortografia de palavras como “facto” e pacto”, às quais o acordo quer impor a síncope do “c”, transformando-as respectivamente em “fato” e “pato”, é anedótica, nem chega a ser triste! A confusão será instalada na escrita, já que tanto num caso como no outro as palavras não são sequer homófonas entre si, pelo menos no Português de Portugal, como poderão tornar-se homógrafas quando pronunciamos tão acentuadamente o “c”? A grafia evolui com a oralidade, não pode ser imposta por decreto! Qualquer língua viva é permeável à mudança, mas esse é um processo natural e não um assunto que possa ser debatido. Uma língua não pode ser tida como independente dos seus falantes nem manipulada de acordo com os interesses de meia dúzia de políticos. A Língua Portuguesa é de quem a fala! Recuso-me a chamar “pato” a um pacto ou “fato” a um facto, é uma ideia infeliz e de muito mau gosto.
Publicada por Isabella à(s) 17:50 1 comentários
Etiquetas: acordo ortográfico, estrangeirismos, teúda e manteúda
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
O Triunfo do Burlesco
Não sei se por desconhecimento ou por simples teimosia em plagiar os modelos alheios, Portugal sofre daquela triste tendência para a cópia – algo que parece começar logo nos bancos da escola – e chegamos mesmo ao ponto paradoxal de copiar dos outros aquilo que nós próprios demos a conhecer ao resto do mundo e que era parte integrante da nossa tradição, bem como da cultura europeia em geral, assistindo-se hoje em dia ao regresso de antigos hábitos já por nós esquecidos.
O Carnaval traça as suas origens de forma quase tão equívoca quanto o são os apetrechos e os gestos que o acompanham. Esta festa, conforme a conhecemos actualmente, regida pela fuga ao real e pela inversão dos papéis sociais, nasceu na Europa medieval como meio de censura, nomeadamente nas regiões mediterrânicas onde esta sempre atingiu uma maior amplitude.
Desengane-se quem pensa que o Carnaval teve início com a prática da Quaresma ainda em época romana. A quarentena penitencial e posteriormente a introdução da Semana Santa apenas vieram reforçar o carácter libertador e boémio da festa que as antecede. A própria etimologia da palavra é bastante dúbia, remetendo-nos, contudo, para a expressão “carne levamen”, ou seja, para a abstinência do consumo de carne. Também a palavra “Entrudo” parece advir de “introitus”, uma introdução à Quaresma. Por outro lado, as máscaras seguem o Homem desde o Paleolítico Superior. Inicialmente detinham um cunho demarcadamente ritualista e apotropaico ligado ao animismo, como ainda hoje sucede em várias culturas. No Teatro grego, a máscara adquiriu um aspecto mais representativo do que religioso e é precisamente na vertente profana que este objecto evoluirá durante a Idade Moderna e a contemporaneidade.
Muito antes do surgimento do Cristianismo já os povos clássicos e pré-clássicos pagãos celebravam uma festa “gorda” que marcava o fim das colheitas e, portanto, um período de abundância, a qual variava de acordo com o calendário agrícola de cada região.
Na Idade Média, o uso de máscaras não era fundamental nesta época de diversão e de pilhagens. Os bailes carnavalescos só vieram a ser instituídos no século XV pelo Papa Paulo II, como forma de controlar a inflamação da consciência e de impedir excessos, uma vez que era de todo impossível coibir o povo de retomar antigas práticas da Roma Imperial – sinais dos tempos renascentistas. Na sua cidade natal, Veneza, os bailes atingiram um esplendor muito particular. Aí, o ruído dos charivari foi sendo substituído pelo silêncio exuberante das máscaras que cobriam de mística os rostos por detrás delas. A noite confunde e indiferencia, nela reina o caos, as fronteiras esbatem-se, os ricos fidalgos misturam-se com os pobres, os credores com os devedores, os homens com as mulheres, os soldados com os ladrões, as donzelas com as meretrizes, é o mundo dionisíaco por excelência, desse mesmo Dionísio, patrono do vinho e da rambóia, de que Nietzsche nos fala, por oposição a Apolo, deus solar cuja luz tudo individualiza e expõe.
Não é à toa que esta festa é planeada de acordo com o calendário lunar. A Páscoa ocorre no primeiro Domingo após a lua cheia que se segue ao equinócio da Primavera (21 de Março), se andarmos 47 dias para trás iremos ter à terça-feira de Carnaval, daí a mobilidade de ambas as comemorações. A quarta-feira de cinzas corresponde ao enterro do Carnaval, cinzas que simbolizam a aniquilação da carne em prol da elevação da alma – a expiação dos pecados, a purificação.
Esquecidos de tudo isto, importámos do Brasil um Carnaval que nos é estranho e que no rigor do nosso Inverno surge descontextualizado e inadaptado. A festa que teve outrora como divisa a entrega aos prazeres da vida antes da abstinência da Quaresma, vê-se assim convertida – para não dizer prostituída – num auto-flagelo do qual nem os mais intrépidos penitentes medievais se lembrariam! Em vez dos antigos bailes e concursos de máscaras vemos desfilar pelas ruas rapariguinhas a tilintar de frio, que dançam incessantemente não de alegria mas para aquecerem o corpo arrepiado pela intempérie! É de assumir que o Carnaval se superou a ele próprio na sua contínua metamorfose; é sem dúvida o burlesco a triunfar sobre os foliões, a escravizá-los na sua incultura e falta de imaginação.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Nossa Senhora das Candeias (em resposta a um comentário)
Quando falamos em mitologias nada é por acaso. A semelhança existente entre o festival do Imbolc e a festa de Nossa Senhora das Candeias em Mourão, Distrito de Évora, não é de modo algum uma coincidência, mas antes o reflexo de uma origem cultural comum, o indo-europeu, assente num substrato neolítico, o que caracteriza a cultura europeia de um modo geral.
Durante a Idade Média verificou-se uma apropriação por parte do Cristianismo, em particular do Catolicismo, de locais de culto anteriormente pagãos. É usual encontrarmos monumentos megalíticos, afloramentos naturais e nascentes cristianizadas. A incorporação de elementos pagãos na mitologia cristã foi a ferramenta mais utilizada pelos paleocristãos (primeiros cristãos) no combate às velhas religiões. A receita era simples: se não podiam impedir o povo de cultuar os antigos deuses, sinalizavam os seus locais de adoração com emblemas cristãos ou instituíam oragos cujas funções eram análogas às das divindades pagãs suas antecessoras.
Metaforicamente, Perséfone remete-nos para a semente que é lançada à terra no Outono, permanecendo na escuridão ctoniana durante todo o Inverno até acudir ao chamamento da luz no início da Primavera.
Este mito ilustra bem o facto de que estas histórias representam muito mais do que simples poesia, elas encerram ensinamentos que só aos Iniciados eram tornados explícitos.
Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora da Candelária, a hagionímica varia consoante as terras e os falares, mas há algo que lhes é transversal: a ideia de luz. Sendo o mimetismo uma parte integrante da magia religiosa, o jovem Sol é aqui representado pela chama tímida acesa no Imbolc quando os dias caminham para o equinócio da Primavera e o fotoperíodo aumenta progressivamente até culminar num Sol adulto, numa fogueira exuberante ateada no dia mais longo do ano, a 21 de Junho, no solstício de Verão.
O conceito que subjaz à festa de Nossa Senhora das candeias é, em todo o caso, o mesmo que transformou o Imbolc, em honra da deusa Brighid, em Candlemas (Candelária), em hora de Santa Brígida, um banquete de luz em homenagem ao Sol que trará nova vida à terra.
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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
Imbolc, a luz do ano...
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A engrenagem do tempo - O Calendário Maia
Os Maias, povo ameríndio cuja expansão cultural atingiu o seu apogeu entre cerca de 250 e 900 d.C., criaram um intrincado sistema de calendarização que tem vindo a causar celeuma desde o início do século XX, devido sobretudo à interpretação aziaga que lhe é erradamente atribuída.
Imaginemos, para o efeito, um sistema de três rodas móveis concêntricas ou uma engrenagem composta por três rodas dentadas, como rotores de cifra ou de um mecanismo de um relógio, que constituam os três sistemas de calendarização que os Maias utilizavam em simultâneo: o Tzolkin – calendário religioso com fins divinatórios, usado para baptizar crianças e decidir quais os dias favoráveis aos confrontos bélicos e às cerimónias; o Haab – calendário agrícola; e o calendário de Vénus que assentava na observação das alterações da posição deste planeta tão caro aos Maias.
O Tzolkin consistia num “ano curto” de 260 dias divididos por 13 meses de 20 dias, sendo que cada dia era designado pelo nome de um deus (imix, ik, akbal, kan, chicchan, cimi, manik, lamat, muluc, oc, chuen, eb, ben, ix, men, cib, caban, eiznab, cauac e ahau). Este sistema era baseado nos ciclos astronómicos das Plêiades e das Híades e já existia na civilização Zapotec, anterior ao período maia clássico. Os templos da cidade de Teotihucán, por exemplo, estão orientados para o ocaso das Plêiades.
Numa época tardia, ao Tzolkin foi acrescentado um quarto calendário independente do Haab, o Tun-Uc, um ciclo lunar feminino de 28 dias (mês natural) que prefazia 364 dias, uma diferença de 104 dias em relação ao ano Tzolkin. Assim sendo, estes dois calendários só voltavam ao ponto de partida ao fim de 1820 dias, ou seja, 5 Tun-Uc completos (364×5), o que equivale a 7 Tzolkin (260×7). Por estes cálculos, a roda do ano sagrado Tzolkin girava sempre duas vezes a mais para se coordenar com o Tun-Uc.
O Haab, calendário civil agrícola, usado para determinar as alturas do ano mais propícias às sementeiras, consistia em 18 meses de 20 dias, seguidos de um mês de apenas 5 dias chamado Uayeb, o que prefazia um total de 365 dias, um ano solar. Estes últimos 5 dias do ano eram, para os Maias, momentos de terror, uma vez que não era possível saber-se se os deuses dariam início a um novo ano ou se o mundo seria destruído no último instante. Se tudo corresse conforme o desejado, celebrava-se a festa do Fogo Novo, que na época da conquista espanhola calhava a 19 de Novembro. Durante o período clássico, os dias do Haab foram numerados de 0 a 19, em vez de 1 a 20.
Assim, cada dia era indicado de acordo com ambos os calendários, o Tzolkin e o Haab, seguido do nome do deus. Como exemplo, um dia podia designar-se por “3 ahau 18 pop”, sendo que a primeira data corresponde ao Tzolkin e a segunda ao Haab. Deste modo eram necessários quatro termos para indicar um dia, ou seja, um número (de 1 a 13), o nome de um deus (entre 20 nomes), outro número (de 0 a 19) e o nome do mês (entre 18 nomes).
Estes dois sistemas foram combinados para que um ciclo ficasse completo de 52 em 52 anos, o que era conhecido como a “ Volta do Calendário”.
Além do período de 52 anos, era muito mais relevante o seu dobro, o ciclo de 104 anos, já que no final dos três calendários, o Tzolkin, o Haab e o de Vénus (104 anos equivalem a 208 revoluções deste planeta em torno do sol), voltavam os três ao mesmo ponto de partida, à mesma data.
Por outro lado, o calendário de contagem longa ou “Grande Ciclo” teve início, segundo a tradição da Quarta Criação Maia, em Agosto de 3114 a.C. e terminará em Dezembro de 2012.
Esta contagem consistia num Tun de 360 dias. Vinte Tuns perfazem um Katun (7200 dias) e vinte Katun perfazem um Baktun (144000 dias). Treze Baktun formam o “Grande Ciclo” (1872000 dias, perto de 5130 anos). No final de cada Baktun, o mundo passaria por uma mudança profunda. É preciso que se diga que os Maias viam a Terra como ela é, um organismo em permanente mutação que obedece a ciclos de criação e de destruição. Todavia, essa destruição não era encarada da perspectiva material, mas sim da evolução da consciência. A mitologia maia oferece-nos uma visão daquele que terá sido o início da Quarta Criação, ou seja, o mundo conforme ele teria sido em Agosto do ano 3114 a.C., e nele não estão presentes episódios de catástrofe, apenas de reorganização do estatuto dos deuses.
Posto isto, conclui-se que não é fácil apreender este sistema numa primeira abordagem, factor com qual a classe sacerdotal contava para poder controlar o povo e torná-lo submisso aos “desígnios dos deuses”, algo que parece ter voltado a vigorar nos tempos que correm. É incrível como sacerdotes desaparecidos há séculos possam estar ainda a influenciar o nosso pensamento. Actualmente, o calendário maia continua a ser mantido por comunidades religiosas da Guatemala.
Segundo diversos investigadores, existe uma correlação entre a era que findará no solstício de Inverno de 2012 e o calendário juliano, criado a pedido de Júlio César em 45 a.C.. No entanto, há que não esquecer o facto de que este calendário já não corresponde ao actual desde a reforma levada a efeito pelo Papa Gregório XIII em 1582, ano em que o ponto vernal (equinócio da Primavera) seria a 11 de Março e não a 21, isto porque já se verificava um desfasamento de cerca de 10 dias entre o calendário coevo e o movimento real da Terra.
Por último, a prova irrefutável de que o calendário maia não profetiza o fim do mundo, reside numa boda real prevista para o ano de 4772 d. C., o que mais uma vez comprova que os Maias não encaravam o final de um Baktun como uma destruição catastrófica massiva, mas apenas como uma mudança necessária e positiva.
Publicada por Isabella à(s) 11:47 0 comentários
Etiquetas: 2012, arqueoastronomia, calendário maia
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
E quando o mundo não acabar...
É do conhecimento geral que o mundo vai acabar daqui a dois anos… ou não será assim?
Talvez andemos a rezar demasiado no altar de Hollywood e a sacrificarmo-nos aos seus deuses, sem nos darmos conta. Quase todos os dias sou confrontada com pessoas de diversas idades, que acreditam que algo aterrador vai ter lugar muito em breve (talvez “numa sala de cinema perto de si”), de acordo com o tão falado e pouco explicado calendário maia. Desde catástrofes naturais sem precedentes – porque já não guardamos nos arquivos da nossa memória a última erupção do Thera, bem como de outras catástrofes semelhantes – até profundas transformações a nível sócio-económico, sem descurar as subtis e não menos atraentes alterações no “estádio espiritual do planeta Terra”, o cardápio, já se viu, é variado, e o milenarismo arranja sempre uma forma de nos acenar com o seu estandarte de assombros, mesmo quando já ultrapassámos mais um milénio…
E eis que “A Guerra dos Mundos” de Orson Welles volta à ribalta, agora sob a forma de um número: “2012”.
Existe, porém, um ponto de vista com qual não posso deixar de concordar: as possíveis catástrofes naturais servirão para unir todos os povos em torno de uma causa comum, algo que só a nossa tecnologia torna possível.
Actualmente, dispomos de meios informativos, estes sim sem precedentes. No século XVII a C. quem terá tido conhecimento da erupção do Thera? Milhares de pessoas e de animais morreram de fome na Europa devido ao Inverno nuclear que se lhe seguiu, isto sem mencionar as sete pragas do Egipto e o desaparecimento da civilização minoica. Nessas épocas remotas, as notícias calcorreavam os caminhos com um atraso de meses, de anos e até de séculos, ao ponto de chegarem às populações mais distantes sob a forma de lendas capazes de transformar um pequeno exército de cem homens num gigante de cem cabeças.
Há quem faça do actual pesadelo haitiano um arauto do que está por vir, mas se temos acesso ao que se passa no Haiti e noutras partes do mundo é porque dispomos de meios de divulgação actualizados ao minuto. Por quantas catástrofes o Haiti terá passado sem que os europeus e outros povos o soubessem?
E, como as notícias se atropelam umas às outras a um ritmo incessante, em breve o Haiti será novamente remetido para as sombras onde sempre viveu, juntamente com a misteriosa cultura e reis escravos megalómanos de que a sua História é feita. É pena que assim seja e é também triste que só agora se dê atenção a um país que, de acordo com as avisadas palavras de Marion Zimmer Bradley, nunca foi levado a sério.
O mundo acaba e recomeça a cada instante, a cada dia. Os Minoicos presenciaram o fim do seu mundo diante da fúria incandescente do Thera; quem sucumbe debaixo dos escombros de um terramoto vê o mundo fechar-se em torno de si; quem na cama de um hospital exala um último suspiro vê o mundo apagar-se a seus olhos… O mundo é isto mesmo, algo esquivo, presente e ausente a um só tempo.
Nem os próprios Maias, autores de tão mediático calendário, foram capazes de prever o fim da sua civilização, melhor dizendo, da transformação da sua sociedade noutras.
Quisera acreditar que fosse possível progredirmos espiritualmente enquanto espécie, quer através da nossa consciência quer mediante catástrofes naturais que expusessem a nossa pequenez e fragilidade, que derruissem o nosso despotismo, que afogassem a nossa arrogância, que reduzissem a cinzas as nossas certezas e que pusessem termo à exploração do Homem pelo Homem.
Não se trata mais de imaginar como seria o mundo sem nós, antes como seríamos nós sem o mundo do qual nascemos e onde fomos criados, sem este mundo capaz de nos abrigar e de suportar a nossa ingratidão, como uma mãe sustenta um filho.
Publicada por Isabella à(s) 12:50 1 comentários
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